O desafio alimentar

Décio Luiz Gazzoni

Dignidade
Produzir alimentos em quantidade suficiente, por meio de um sistema sustentável, para uma população que não dispõe de renda para agregar demanda no mercado, é uma missão que se afigura impossível. Esse é o desafio anteposto aos Ministros de Agricultura de todos os países da ONU, reunidos em Roma, durante o World Food Summit, organizado pela FAO. A proposta da FAO, lançada originalmente no início da década de 90, pretendia reduzir em 50% a fome no mundo, até 2015. O não atingimento das metas parciais, após 10 anos de tentativas, obrigou a um repensar das metas do projeto global.
  O desafio colocado pela FAO deveria ser, também, o compromisso de cada cidadão empenhado em legar aos seus descendentes um mundo mais justo. Para atingi-lo, será necessário alavancar recursos para garantir o fluxo de alimentos por, no mínimo, uma geração, enquanto se investe em condições mínimas de cidadania, como habitação, saneamento básico, saúde e educação. Será necessário investir nos países com vocação agrícola, para garantir a oferta de alimentos estabilizada durante a vigência de um programa destinado à erradicação da fome. Os principais vetores que comandarão as políticas, e que devem ser considerados para garantir o sucesso do programa, são os seguintes:

Globalização:
A globalização e a liberalização do comércio deveriam favorecer países que dispõem de competitividade natural. Na prática, os países ricos impõem suas regras comerciais, prejudicando especialmente os países de vocação agrícola. A implementação do processo de globalização deverá ter sua lógica revista, de maneira que o processo seja justo e solidário, com respeito e equilíbrio entre os parceiros comerciais, sem drenar recursos dos países pobres para os ricos.
  Tecnologia:
A tecnologia será o diferencial competitivo do novo século. Os avanços em biologia molecular, química fina, energia e comunicação e informações, aprofunda o fosso entre ricos e pobres. Pontes de conhecimento, assistência técnica, parceria e cooperação devem ser implementados continuamente para evitar um "apartheid" tecnológico que implodiria as políticas de erradicação da fome, tornando-as insustentáveis no longo prazo.

 

 

Recursos Naturais:
Quando não é possível produzir de forma sustentável, há o esgotamento dos recursos naturais, com destruição de vegetação nativa, matas ciliares e nascentes, além da contaminação dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos.

 

Saúde: A pobreza, associada com a desnutrição, completa um círculo vicioso com as más condições de saúde, aumentando o custo social da desnutrição. A população afetada perde as condições de trabalho e a capacidade gerencial para levar avante pequenos empreendimentos, que possam dar sustentabilidade a programas de erradicação da fome

 

  Urbanização: Embora o custo de um emprego ou de manter um cidadão na área rural seja mais baixo que o equivalente na área urbana, a falta de oportunidades e de perspectivas no meio rural incentiva o êxodo. Como parcela considerável da geografia da fome está localizada em áreas rurais, os fluxos migratórios aumentarão o percentual de famélicos nas cidades e reduzirão o aporte de alimentos que, embora insuficiente para sua subsistência, era produzido pelos retirantes.   Mudanças no campo: O êxodo rural, o envelhecimento da população rural e a queda no valor das comodities agrícolas, estão mudando a face do campo e inviabilizando a agricultura de subsistência auto-sustentada, exigindo políticas de assistência social dirigidas a mitigar o impacto das forças de mercado, que expulsam o homem do campo.

 

Conflitos: Ainda subsistem dezenas de conflitos localizados, embates étnicos, lutas pelo poder em sociedades desestruturadas ou em via de reconstrução, drenando recursos e energia que poderiam estar voltados para políticas de erradicação da fome.   Mudanças climáticas: O aquecimento global, provocado pelas pesadas e contínuas descargas de poluentes oriundos das plantas industriais dos países ricos, pode afetar profundamente o ambiente rural, alterando parâmetros climáticos que afetem o desenvolvimento dos cultivos. Sem tecnologia para conviver com as mudanças climáticas, os habitantes de países pobres correm o risco de ver reduzidas suas safras, ampliando o número de famintos em locais afetadas por episódios climáticos adversos.

Outro mundo é possível?

Décio Luiz Gazzoni

B o x e s

Reformas
Estruturais
Modelo
Falido
Alimentando
com Energia
Reforma Agrária
Privada

 

A credibilidade de um analista repousa na sua capacidade de distanciar-se dos fatos, refletindo sobre os mesmos sem envolver-se, emocionalmente, com o tema. O acirramento dos conflitos no campo, com a seqüência de ações promovidas pelo MST, invadindo fazendas experimentais da Embrapa, do Iapar, do IAC e do IZ, obrigou-me a isolar minha porção analista da parcela cientista, sem permitir que a revolta de assistir, impotente, a invasão de campos experimentais, gênese das tecnologias que tornam o agronegócio brasileiro o mais competitivo do mundo, obnubilasse a frieza de considerar os fatos latu sensu.

 

  A reflexão obrigou-me a retroceder no tempo e nos fatos, buscando raízes e motivações, o que é uma tarefa árdua quando o tema em análise suscita polêmica acirrada e posições antípodas. Após dezenas de horas de investimento em colóquios e solilóquios, julgo haver encontrado o fio condutor que interliga o MST, Fernandinho Beira Mar, Jacques Chirac, George Bush, a fome na África e na Ásia, o terrorismo, a violência urbana, as multinacionais, os banqueiros, o FMI, os subsídios agrícolas e os cientistas: trata-se da falta de perspectiva de uma vida condigna, decorrente do desemprego ou da falta de renda.

 

  Uma sociedade organizada e evoluída rege-se por leis e exceções não podem ser admitidas, sob pena de fazer da Lei letra morta. Ipso facto, a solução para os problemas sociais, incluso a posse da terra, deve ser encontrada dentro da lei, mesmo que isso signifique mudar a lei – mudança regida por um contrato social de legitimidade inequívoca. Portanto, in limine, passo ao largo da argumentação do MST para justificar invasões de terra. Entretanto, uma coisa é o estamento jurídico-legal, que pode ser debatido, modificado, adaptado para diferentes circunstâncias. Outra coisa, completamente diferente, são as leis não escritas, as leis de mercado, os usos, os costumes, os modismos, os paradigmas, muito mais difíceis de serem modificados.

Para facilitar a análise, vamos partir do princípio de que toda o aparato jurídico legal será cumprido pelos atores sociais, para nos determos na análise dos demais fatores.

Indignidade

Há algum tempo escrevi que "...A insônia de 9 entre 10 presidentes de nações do mundo é causada pelo desemprego (a do outro é causada pela Monica Lewinsky)." Mr. Clinton não é mais presidente, logo o desemprego é a primeira preocupação de dez entre dez líderes mundiais. O que não significa que a preocupação se desdobre em ações concretas para resolver o problema.   Dito de outra forma, o traço que une MST à Fernandinho Beira Mar, a fome ao terrorismo, a violência às multinacionais é a indignidade causada pelo desemprego, numa sociedade em que tudo é mediado pelo vil metal. Nas sociedades primitivas, organizadas em torno do extrativismo, caça e pesca para prover abrigo e alimentação, não se formariam filas de 130 mil brasileiros disputando uma vaga na lista de eventual futura contratação de garis, no Rio de Janeiro, ou de 17 mil para uma vaga de coveiro, em Londrina.   Julgo impossível retornar às origens. Provoco o leitor afirmando que sequer seria útil ou factível a "desabolição da escravatura". Inútil, porque o desemprego é causado pelo vilipêndio da mão de obra, resultante de uma demanda inferior à oferta. Não factível, porque o custo de um escravo (alimento, saúde, roupa e moradia) seria superior ao salário mínimo brasileiro, que dizer das famílias africanas ou asiáticas que sobrevivem (?) com US$2,00 mensais. Ora, se nem o primitivismo ou a escravatura resolvem o principal dilema da avançada sociedade do século XXI, que perspectivas legaremos aos nossos filhos?

História

As raízes do problema remontam aos primórdios da História, quando o acúmulo patrimonial tornou-se o vetor do comportamento social, lídimo fruto da ambição humana. Costumo afirmar que a Humanidade é movida por duas forças diretrizes. A primeira é a necessidade, que fez nossos ancestrais morarem em cavernas, ao abrigo das intempéries, e caçarem feras para alimentar-se de sua carne e vestir sua pele. Já a ambição leva a pagar muitos salários mínimos por um terno Giorgio Armani, que abriga o corpo com eficiência similar a vestimentas que custam 1% de seu valor. Porém, que preenche o ego e a vaidade de quem o veste, imaginando-se "superior" aos seus semelhantes.   Acúmulo patrimonial é função de duas vertentes: a legal, admitida pela sociedade, em que se maximiza o retorno dos fatores de produção disponíveis; e a ilegal, representada pela subtração do patrimônio alheio. A acumulação patrimonial foi fortemente favorecida, no início, pela extensão de terras. Posteriormente, os fatores capital e tecnologia passaram a ter maior importância, em detrimento do trabalho e da natureza.

Reza o ditado popular que dinheiro chama dinheiro. A usura desmedida, na gula de acumulação patrimonial, obriga o fechamento da equação com distanciamento cada vez maior entre ganhadores, em uma ponta, e perdedores, na outra. Ganham os detentores de capital, perdem os tomadores, os que pagam juros. No início os detentores eram pessoas físicas, passaram a ser bancos, tornaram-se "instituições multilaterais" no século passado. Não contentes em explorar e subjugar o tomador de empréstimo, impõem-lhe condições leoninas que, em última análise, o impedem de fugir do círculo vicioso, tornando-o um eterno dependente do capital que subjuga a quem o necessita. Regras cuja única lógica é a prioridade ao pagamento de dívidas financeiras, para quem o sentido de desenvolvimento, emprego, renda ou dignidade é inexistente.   Jean Jacques Rousseau, analisando as razões das desigualdades sociais, intuiu: "O primeiro homem que, cercando um terreno, lembrou-se de dizer – isto me pertence – e encontrou criaturas suficientemente simples para acreditar no que dizia, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil".

Tecnologia e desemprego

Na vertente tecnológica, não escapulo de uma autocrítica à classe à qual pertenço, a dos cientistas. Nós nos movemos por demandas. Demandas dos clientes, demandas das políticas públicas, demandas sociais. O busílis da questão é que a maioria das demandas embute um requisito de redução de custo, no mais das vezes sinônimo de menor utilização de mão de obra. Ou seja, automação, avanço tecnológico, pode criar algum emprego friccional, envolvido na operação do próprio processo mas, como regra geral, reduz a demanda global de mão de obra.   O exemplo agrícola é didático, nesse particular. A acirrada competitividade internacional, a contenção da demanda global de alimentos (porque temos mais de um bilhão de pseudo-cidadãos do mundo, desempregados ou sub-empregados que não possuem renda para participar do mercado) gera um círculo vicioso de busca selvagem de competitividade, com foco na escala fundiária, na mecanização e na automação de processos. Ou seja, reduzindo mão de obra e retroalimentando um modelo satânico.   Podemos conceder meio perdão tanto a cientistas quanto a empresários rurais, pois o mundo globalizado não nos concede opção. Porém, parcela da culpa deve ser imputada a esses atores, na mesma magnitude que a todos os demais, lideranças ou liderados, pela falta de investimento intelectual na formulação de alternativas, que retomem o equilíbrio entre os fatores de produção, bem como pelo vácuo de empenho na sua implementação. Atualmente, enquanto tecnologia e capital são altamente remuneradas e correm poucos riscos, trabalho e natureza são explorados, depredados e sub-remunerados.

 

O custo do desequilíbrio

O mundo move-se de acordo com os paradigmas da elite dominante, que busca privilégios pessoais ou setoriais. Essa análise vale para banqueiros, donos de poços de petróleo ou detentores de patentes. A inequação da riqueza unilateral jamais fechará, porque os excluídos do processo – os desempregados – desdobram-se em outros fenômenos sociais.

Há os "honestos", que aceitam as regras e por elas jogam, vagando pelas portas das fábricas, que ostentam frias e recorrentes placas de "Não Há Vagas", insensíveis ao fato de que cada desempregado pode representar quatro bocas famintas. Alguns abandonam tudo, esperança e família, e desaparecem no mundo, envergonhados de serem vítimas de uma situação que não criaram e que não podem mudar. Embora não seja um fenômeno freqüente, uma parcela dos desempregados crônicos opta pela solução definitiva - o suicídio, imediato ou lento. Os restantes, quando já não existe nem medo nem esperança, sobrevivem à custa da assistência social, da esmola ou da solidariedade de parcela da sociedade.   Há os que optam pela via ideológica da luta extremada. Manipulados ou não, essa análise é marginal quando se considera que, na raiz do ataque ao World Trade Center, estava um eloqüente grito de alerta contra a falta de perspectivas do arranjo econômico e social, que domina esse planeta, cuja gerência Deus nos legou.

 

Há os que vão para a beira da estrada, nos barracos cobertos de lona. De onde partem para invadir propriedades rurais, inclusive as parcelas experimentais da Embrapa. Ou, como ocorreu em julho, invadem áreas de assentamento, de ex-companheiros de beira de estrada. Para a linha de raciocínio que pretendo imprimir, é irrelevante se o MST é manipulado por seus líderes, se sua meta é a revolução socialista a partir do campo, se a busca de terra é uma escusa, não um objetivo final. Isso é conseqüência, não causa do processo. O fato é que famílias com outra perspectiva de vida não se sujeitariam à indignidade de não ter um endereço fixo ou de depender das esmolas das cestas básicas. Aliás, esse fato vinha sendo escamoteado porém, recentemente, as próprias lideranças (talvez menos preparadas politicamente) admitiram, publicamente, o recrutamento de desempregado urbanos, sem qualquer vínculo anterior com a agropecuária, para engrossar a reivindicação por uma parcela de terra.   E há os não ideológicos, tão criminosos quanto os terroristas, que capitulam frente à falta de perspectivas e oportunidades. É a porção bandida da sociedade - ladrões, seqüestradores, traficantes. A pergunta que não quer calar é a seguinte: quantos desses bandidos optariam pela senda do crime se à sua frente duas portas se abrissem, sendo uma delas a perspectiva de uma vida digna, embora dura?

 

 

Desemprego no campo

É nesse momento que o acampado do MST encontra seu ponto de contato com seus antípodas, o privilegiado pequeno produtor europeu e Fernandinho Beira Mar. Os três não possuem sustentabilidade no modelo econômico global. O pequeno produtor europeu, um privilegiado, somente mantém sua inserção social à custa de pesadíssimos subsídios que a sociedade carreia para o setor, a fim de evitar que ele engrosse as estatísticas do desemprego. Retire-se o tubo dos subsídios e 90% dos agricultores europeus passarão a compor a marginália social de seus países. Aos excluídos, como Beira Mar, a sociedade acenou com a perspectiva de poder e patrimônio, pela via rápida do crime, do tráfico de drogas. O qual, por sua vez, é sustentado pela angústia existencial dos dependentes, em cuja raiz vamos encontrar componentes como desemprego ou a luta pela manutenção do emprego!   Durante a campanha eleitoral, o presidente Lula prometeu criar 10 milhões de empregos, ao longo do seu mandato. Não explicitou, propriamente, quem pagaria por esses empregos. Seguramente, não serão empregos públicos, um serviço que o Estado, falido, não pode prestar. Decorreram oito meses de seu governo e os institutos de pesquisa registram o fechamento de quase um milhão de postos de trabalho, no período. Na frieza matemática, para o desempregado resulta que, quando iniciou o Governo, Lula precisaria criar 208.333 empregos por mês, para cumprir sua promessa. Agora, já precisa criar 275.000 empregos por mês, até o final do mandato. Com a economia em baixa, após o Carnaval poderá ser necessário criar 363.636 empregos por mês. Ou, o equivalente a criar uma nova Petrobrás a cada semana!!! Onde buscar esses empregos? Como o campo pode ajudar a solver esse dilema?

Romper paradigmas

Antes de prosseguir é preciso voltar a refletir sobre as regras do jogo. No curto prazo não há alternativas que não sejam investir fortemente na produção, incentivar a geração de empregos, abrir novas oportunidades. Ações emergenciais incluem apoio à agricultura familiar, como forma de geração de emprego e renda. Como exemplo, temos a possibilidade de conjugar a geração de energia e de alimentos, de forma comunitária, como as propostas em exame pelo Estado do Paraná e pela Eletrobrás.   Porém, no médio prazo, a sociedade mundial terá que investir em uma legítima virada de mesa, para que a geração dos nossos netos (a dos filhos já está perdida!) possa viver em um ambiente de maior equanimidade e de justiça social. Propostas como a da FAO, que ambiciona reduzir à metade a fome no mundo até 2025, precisam ser implementadas, com seriedade, pelas lideranças mundiais, mesmo com o pecado original de ser uma proposta tímida. Da mesma forma, a Marcha Global contra o Trabalho Infantil, encabeçada pelo indiano Kailash Satyarthi, precisa encontrar eco na sociedade civil e no segmento empresarial. Mas, acima de tudo, precisamos de um grande programa global que garanta a cada cidadão uma fonte de renda, que lhe permita viver com dignidade.

No novo contrato social, os detentores de capital e de tecnologia terão que abrir mão de parcela de sua elevada remuneração, para criar um espaço de valorização do trabalho e de proteção à Natureza. A legislação trabalhista terá que mudar os seus conceitos, de forma radical. Como provocação, proponho que os encargos sociais do trabalho incidam sobre o faturamento da empresa e não sobre o número de posições de trabalho. No caso brasileiro, o fundo de garantia, a contribuição patronal à previdência social, a remuneração de férias, as licenças, etc. seriam cobradas das empresas proporcionalmente ao seu faturamento e de forma fortemente progressiva, com maior incidência sobre os faturamentos mais altos. Cálculos atuariais indicariam as alíquotas de incidência para tornar o modelo justo, solvente e sustentável.   Como forma de incentivo ao emprego, cada empregado contratado, com estabilidade empregatícia superior a determinado período, representaria um bônus em forma de percentual de desconto à taxação do faturamento. Por outro lado, cada robô industrial anularia o desconto equivalente ao número de empregos que ele aboliu, além de onerar, pesadamente, a contribuição empresarial. Outros incentivos podem ser criados, como a redução progressiva da jornada de trabalho e a imposição de limites estritos ao trabalho em horas extras.

Obviamente, arranjos produtivos tão revolucionários somente podem ser tomados em conjunto, por todos os países do mundo, caso contrário gerariam desequilíbrios de competitividade que anulariam os esforços pró-emprego. Entretanto, para que outro mundo seja possível, revoluções consensuadas entre os atores sociais deverão ser perpetradas e, quem não tiver competência, que não se estabeleça, em respeito ao futuro da Humanidade.

Um modelo falido

A reforma agrária pode ajudar, em grande medida, a diminuir o desemprego. Porém, seguramente, não contribuirá em nada caso persista a insistência em aplicar o mesmo modelo fracassado, adotado nos últimos 50 anos. É uma falácia medir o sucesso de um processo de reforma agrária pelo número de assentados que, como vimos, é facilmente manipulado pelos sucessivos governantes.

 

 

  O sucesso deve ser aquilatado pela sustentabilidade do assentado, da progressiva melhoria da sua qualidade de vida e das perspectivas que oferece à geração seguinte. Assentar uma família para perpetuar a sua pobreza ou para que, vítima de um processo insustentável, ela retorne à favela urbana ou ao acampamento rural, deveria constituir-se em crime hediondo, punível por leis severas, por frustrar um legítimo sonho humano e a perspectiva de uma vida condigna.

 

  A primeira questão que se impõe é que o agricultor familiar precisa dominar, como condição sine qua non, a tecnologia de produção e a capacidade de gestão. Não basta dispor de terra, é necessário saber como cultivá-la de forma sustentável, dela extraindo, perpetuamente, o sustento familiar. Não basta saber amanhar a terra, é necessário saber comprar e vender. Adquirir os insumos corretos e vender pelo melhor preço, no momento adequado, é sinônimo de habilidade negocial. Educação, treinamento, assistência técnica são pré-condições do processo.

Agricultores de famílias com tradição centenária na agropecuária faliram, solenemente, por incapacidade de adaptar-se às rígidas exigências impostas pelo mesmo mercado globalizado, que insiste em excluir o emprego de seu dicionário. Dispondo de terra, o agricultor necessita saber o que plantar, ou o que criar, para maximizar o fator terra, agregando a ele a tecnologia. Precisa saber como lidar com o capital, dreno insensível de sua perspectiva de lucro, partindo-se do princípio que o fator trabalho encontra-se em patamar adequado, quantitativa e qualitativamente.   É importante a reflexão do processo pelo qual passaram tanto a União Soviética, através das sovkoses e kolkoses ou China e sua Revolução Cultural. Um dos ideólogos da Revolução Socialista, Joseph Stálin, foi quem desenvolveu o processo de coletivização forçada da propriedade rural, criando as cooperativas agrícolas (os kolkoses) e as fazendas estatais (os sovkoses), o que acarretou baixa produtividade nos campos. Os analistas apontam o descolamento conceitual de ambas das leis de mercado como uma das causas principais de seu insucesso, por não haver qualquer estímulo para ganhos de produtividade, rentabilidade ou qualidade.

O principal motivo do fracasso da Revolução Cultural também feriu de morte o modelo soviético, que foi a falta de vocação dos neo-agricultores, assentados no campo à força, a falta de experiência anterior e de vocação agrícola e a dificuldade de inserir-se em um contexto maior, dominado pelas leis de mercado.   É importante refletir que, se as kolkoses foram um fracasso, esse foi ainda maior nas sovkoses, que eram administradas com assalariados. Nas granjas coletivas (cooperativas ou kolkoses) o fracasso ficou restrito à parte coletiva, porém a parcela da área que o agricultor poderia explorar, em forma individual, foi o sustentáculo da produção agrícola soviética do período. Ou seja, as causas ligadas à motivação e à gestão foram mais importantes do que o domínio de tecnologias de processo para a sustentabilidade do empreendimento.   Portanto, a solução passa pelo apoio à agricultura familiar caracterizada pela inclusão social e pela sua sustentabilidade. Não basta conhecer agricultura, o candidato a proprietário de uma parcela de terra precisa estar preparado para ser empresário. Um assentado é um híbrido de trabalhador rural com micro-empresário que, embora micro, vivencia todos os riscos e as agruras de ser empresário. Por vezes essa não é a sua vocação, logo estaria fadado ao insucesso, tamanhas são as exigências impostas ao produtor rural nesse princípio de século.

 

Um modelo sustentável

Visto por essa óptica, por mais escabroso que possa parecer, será necessário um "vestibular" para selecionar candidatos a futuros agricultores familiares. Por um lado, sua experiência passada e suas habilidades no trato com a terra precisam ser aquilatadas, ao menos para saber se o postulante diferencia uma tiririca de uma planta de trigo. Por outro, seu potencial de absorção tecnológica e de domínio de rudimentos de gestão necessitam ser apurados.   Se a solução não pode ser individual, terá que ser coletiva. O associativismo é fundamental para o sucesso de um empreendimento, cabendo à organização cooperativa eliminar, comunitariamente, os pontos fracos individuais, provendo assistência técnica e habilidade gerencial. É de sua responsabilidade o suporte à mecanização comunitária. Porém, mais que isso, a cooperativa precisa dispor de planejamento estratégico e visão para ganhar escala através do investimento em cultivos de alto valor intrínseco e da agregação de valor, pela agro-industrialização. Será sua obrigação detectar nichos de mercado e oportunidades mercadológicas, atuando agressivamente para garantir competitividade, sem dispor da escala da extensão de área individual.

A questão não se esgota nesse ponto. Garantir infra-estrutura e reduzir o custo Brasil são exigências do modelo de agricultura globalizada, que devem ser providas pelo Governo. Por infra-estrutura – sem a pretensão de esgotar o tema - entenda-se, minimamente, a geração de tecnologia que promova um diferencial de competitividade em relação aos concorrentes; a existência de um sistema de transferência de tecnologia para encurtar o tempo de adoção e generalizar a sua apropriação.   Fundamental é a presença ativa de um sistema de defesa agropecuária que garanta a melhor condição sanitária para a produção e o processamento de produtos agropecuários; a disponibilidade de estradas trafegáveis para a circulação de insumos e produtos; a disponibilidade de crédito a tempo e a hora, em volume adequado e a juros compatíveis com a atividade; o estabelecimento de uma política tributária que não sufoque a atividade produtiva, entre outros quesitos.

Compromisso

Podemos tratar a Reforma Agrária burocraticamente, como bandeira eleitoral, acirrando conflitos no campo, induzindo a violência e desestimulando legítimos agricultores, que têm mantido este país à tona, enquanto o restante da economia derrapa nos desvãos de um modelo injusto. Podemos tratá-la como questão ideológica, sem compromissos de ordem prática. Podemos encará-la de forma descolada do complexo de problemas que afeta a sociedade contemporânea deste início de século. Podemos até apelar para o modelo paternalista do subsídio social, esmola rejeitada pelo ilustre e saudoso Luiz Gonzaga: "Seu dotô, uma esmola, para um homem que é são, ou lhe mata de vergonha, ou vicia o cidadão".   Ou, alternativamente, podemos focar na busca de efetiva inserção social, com compromissos de geração e distribuição de renda, de criação de empregos e, subsidiariamente, de ampliação da oferta de produtos agrícolas e de disputa por um quinhão ampliado do mercado. Nesse caso, será necessário exercitar alternativas ao falido círculo vicioso do conflito, desapropriação, fracasso, abandono e retorno ao conflito. Para quem imagina que essa questão é simples e cinge-se a uma luta entre sem terra e com terra, sugiro que olhe em volta e reflita que o cárcere privado, a que famílias honestas estão impostas, em suas casas e apartamentos, para esquivar-se da violência urbana, é parte do mesmo problema dos sem terra, o que exige soluções cirúrgicas e quebras de paradigmas, atributo de lideranças corajosas e visionárias.

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BOXES

Reformas estruturais

Qualquer dona de casa sabe que as contas de receita e despesa precisam fechar no final do mês. Se não fecharem, ou os pagamentos são postergados, com incidência de multas e juros; ou apela-se para bancos e agiotas – e aí é que as contas não vão fechar nunca! – ou aplica-se o calote e então, adeus crédito e credibilidade!

O conceito é o mesmo para uma empresa ou para um Governo. Como as receitas são finitas e as despesas tendem ao infinito, em teoria os governantes deveriam estabelecer prioridades para promover o encaixe das duas partes. Se esse encaixe não ocorre, temos o famoso déficit público, um dos satãs do desenvolvimento. O déficit público é auto-alimentável, por conta dos altos juros aplicados sobre a dívida pública, drenando para os banqueiros parcela ponderável da receita dos nossos tributos.

 

 

 

  Para colocar uma camisa de força nos governantes, obrigando-os a investir em serviços públicos e em desenvolvimento a sociedade pressionou e o Congresso Nacional aprovou a Lei de Responsabilidade Fiscal. O espírito da Lei, e a intenção da sociedade e de seus representantes é "Não pode o administrador público gastar mais do que arrecada, sob as penas da Lei". Porém, os administradores públicos conseguiram fazer uma leitura diagonal endógena da lei, concluindo que "Não pode o administrador público arrecadar menos do que gasta, sob pena de não ser re-eleito". Em conseqüência, o Brasil tem uma das mais altas pressões tributárias do mundo, estimada em mais de 51% do PIB. Descontada a estimativa de sonegação, a pressão tributária real foi de 42,1%, em maio de 2003.

Como a geração de riquezas é finita, quanto mais o Governo arrecada, menos a iniciativa privada e os cidadãos poupam e investem. Como o Governo arrecada mais para pagar um serviço da dívida cada vez mais elevado, a conjugação dos dois fatos resulta que cada vez menos empregos serão gerados, aumentando o problema social.   Qualquer reforma deve ter um sólido lastro conceitual, para não incorrer na heresia de ser alcunhada de reforma sem nada reformar. Em nosso país, a primeira reforma deveria ser a política, conceitualmente para obrigar o candidato, vinculado a um partido, a defender um conjunto de propostas que, uma vez eleito, serão objeto de luta tenaz para que sejam postas em prática. Deveria, também, haver um vínculo geográfico, para obrigar a uma prestação de contas direta aos seus eleitores.   Dessa forma, evitar-se-ia o espetáculo de o candidato defender uma proposta nos palanques (preferencialmente uma dura crítica ao Governo anterior, facilitando sua eleição) para, uma vez eleito, esquecer tudo o que falou ou escreveu, bandeando-se para a "base do Governo", em troca de cargos e verbas, deixando o eleitorado e os cidadãos desesperançados no modelo de representatividade democrática, pelo estelionato eleitoral em que se transformou o voto.

 

De sua parte, a reforma tributária deveria repousar, idealmente, no seguinte conjunto ideológico:

1. a pressão tributária, medida como um percentual do PIB, deve ser proporcional à riqueza do país. O conceito é facilmente entendível, pois, sociedades ricas possuem um lastro de renda adicional às suas necessidades básicas, o que lhe permite não apenas suportar maior incidência tributária, como manter suas taxas de crescimento, apesar da pressão tributária. Nesse particular, países na mesma condição de desenvolvimento do Brasil, como Chile, México ou Venezuela, contentam-se com uma pressão tributária de 16% do PIB;   2. a contrapartida de serviços públicos deve ser proporcional à arrecadação tributária. Pelo conceito, alta pressão tributária é atributo associado a sociedades ricas, com espesso colchão social providenciado pelo governo, medido em termos de benefícios (aposentadoria, seguro desemprego) ou de serviços (educação, saúde, segurança, transportes) de alta qualidade;

 

 

  3. a tributação deve incidir mais fortemente sobre a renda e o consumo final. No Brasil, temos excesso de tributos, a maioria incidindo sobre a produção, o que elimina postos de trabalho e conduz à perda de competitividade;

 

 

 

 

4. os tributos devem ser progressivos. Ou seja, quem pode mais paga mais. No Brasil temos excesso de regressividade, o que conduz à pravidade de os tributos incidirem, proporcionalmente, com maior intensidade sobre os mais pobres;

 

  5. seletividade tributária em função da essencialidade dos bens e serviços. Essa análise ajusta-se à discussão sobre tributação nos alimentos, ao menos àqueles componentes da cesta básica, que deveriam ser desonerados, diferencialmente da incidência sobre o consumo de luxo.

A Previdência Social do Servidor Público e o pagamento do serviço da dívida constituem o entrave financeiro para que os Governos possam atuar como indutores do desenvolvimento. Durante toda a discussão da Reforma da Previdência, não houve um momento em que, lucidamente, fosse trazida à Sociedade o nó górdio da Previdência. Inútil discutir integralidade ou paridade descolado dos conceitos de equidade e viabilidade. O Presidente Lula roçou esse conceito quando considerou uma vergonha o fato de uma cortadora de cana não dispor de aposentadoria e um juiz aposentar-se, na flor da idade, com salário de R$17.000,00 mensais.   Faltou expor números simplificados que demonstrassem se a contribuição descontada dos proventos do funcionalismo público é suficiente para custear o mesmo salário que percebia na ativa, ao longo de toda a sua aposentadoria. Em sendo insuficiente, a discussão que se impõe é: quem pagará o salário integral desse servidor quando esgotar-se a sua contribuição para o fundo? Não é uma questão simples, pois as alternativas são: cessar o pagamento, por esgotamento da sua parcela contributiva ou sacar das burras do Tesouro, à débito da arrecadação tributária.

Como dinheiro não possui o dom da geração espontânea, para cobrir o rombo atuarial da previdência, a Sociedade teria que aceitar abrir mão de menor investimento na Saúde, na Educação ou na Segurança. Essa questão não foi posta à discussão, tendo sido escamoteada nos bastidores das negociações políticas, para que todas as peles se salvassem.   Menos a pele do Brasil, porque, no próximo mandato presidencial, o assunto voltará à tona com gravidade e urgência ainda maior do que a atual. E assim será, per saecula saeculorum, até que sejam adaptados os conceitos que nortearam a criação da previdência social, nos anos 30, à realidade da Sociedade do século XXI.

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O modelo falido

Em 28 de março passado, todos os telejornais e outros órgãos da mídia mostraram a visita do Presidente Lula ao Assentamento Itamarati (Ponta Porã – MS). A mídia também difundiu as metas que foram apresentadas ao Presidente: o assentamento produziria 60 mil toneladas de grãos, garantindo renda mensal de R$1 mil por família assentada, tornando-se um modelo para a Reforma Agrária no País.

Passados três meses, o repórter Luiz Maklouf Carvalho voltou ao assentamento e registrou uma realidade bem diferente. A íntegra de sua reportagem (Assentamento Itamarati ou "...levaram o presidente no bico") encontra-se em http://www.estado.estadao.com.br/editorias/2003/07/06/pol018.html. Ao repórter, o coordenador da CUT/MS, Vilson Balhs Hartinguer explicou: "Exageraram muito e o presidente acreditou. Levaram o presidente no bico". Vamos destacar alguns pontos importantes da matéria.

O repórter aponta que "A produção de soja e milho irrigados da safra 2002/2003 foi de 22 mil toneladas, um terço do que produzia a Fazenda Itamarati; pelo menos 277 famílias continuam sem renda e com dificuldades para as três refeições diárias; a maior renda mensal das famílias que receberam não ultrapassou os R$ 330; a energia utilizada pelos pivôs centrais continua a ser paga pelo governo estadual, através do desconto do ICMS da Itamarati Agropecuária, a fornecedora de energia, que ainda pertence a Olacyr de Moraes - são outros 25 mil hectares produtivos do outro lado do assentamento."   Abro um parênteses: Em 1982 o então presidente da Embrapa, Dr Eliseu Alves, cometeu o desatino de designar-me para a Chefia da Unidade da Embrapa em Dourados–MS. Na ocasião, um dos desafios impostos à Embrapa foi demonstrar que era possível cultivar trigo de alta produtividade e qualidade na Fazenda Itamarati. Conseguimos com o proprietário, Olacyr de Morais, que um dos pivôs da fazenda ficasse integralmente a cargo da Embrapa. Naquele ano ocorreu uma geada de grande intensidade, no dia 7 de setembro, a menos de um mês da colheita do trigo, o que tornou o produto imprestável para a panificação. Entrementes, o triguilho colhido na área do pivô rendeu mais de 4 toneladas por hectares. Isso demonstra qual era, há 21 anos, o potencial produtivo da fazenda que, à época, dispunha de produtividade de milho e soja ombreada com as mais altas do mundo. Fecho o parênteses.

Prossegue o repórter "Há outros problemas no Assentamento Itamarati: cinco pivôs centrais de irrigação estão em processo irreversível de sucateamento e tem ocorrido furto de peças; duas represas romperam e podem arrebentar; há montes de vasilhames com veneno agrotóxico a céu aberto; só existe um médico para uma população de 8 mil pessoas; o precário posto de saúde não funciona nos fins de semana; a escola merece o apelido de sardinha em lata; os ônibus que transportam as crianças estão superlotados; parte das estradas internas necessita de pronta recuperação; a água é de poço, e nem todos conseguiram obtê-la; a assistência técnica está reduzida a uma dezena de funcionários públicos estaduais que nem sempre estão por lá."   Segundo a versão corrente na região, os pivôs do assentamento apenas produziram porque foram arrendados para um paranaense, Irineu de Paula que, além de seu conhecimento tecnológico, levou máquinas e operadores que permitiram produzir milho e soja na área irrigada.

O repórter Luiz M. de Carvalho flagrou uma violação à Lei e um desrespeito à saúde e ao ambiente, quando observou pilhas de embalagens de agrotóxicos, já utilizados, empilhados a céu aberto, ao lado de um escritório. A legislação brasileira obriga os usuários a devolver, prontamente, as embalagens vazias de agrotóxicos para reciclagem, a fim de proteger o ambiente e a saúde humana.   Valendo-se dos registros do assentamento, o repórter fez os cálculos da renda dos assentados: "O resultado redondo da safra do MST está detalhado no computador de Ronaldo, pivô por pivô. Foram 20.460 sacas de soja, vendidas por R$ 656.710,87, e 91.916 sacas de milho, vendidas por R$ 1.724.477,29. Total da receita bruta: R$ 2.759.188,16. Total dos custos: R$ 1.921.000 (R$ 975 mil só com herbicidas e R$ 260 mil com Irineu). O lucro líquido foi de R$ 838.188,16. Dividido pelas 320 famílias, deu R$ 2.619,33 pela safra - ou R$ 218,27 mensais por família. Na média de quatro integrantes em cada uma, dá R$ 54 mensais para cada assentado do MST."

E o repórter denuncia: "Nos números. Na realidade, 95 famílias nada haviam recebido até o dia 24 de junho. De manhã, sol a pino, 19 representantes do Grupo 16 observavam a colheitadeira de Irineu despejar, nos caminhões, o milho de meio pivô (58 hectares). "Por enquanto, eu estou como Deus quer", disse, em cima do caminhão, o assentado João José Barros, de 49 anos, casado, cinco filhos".   O exemplo do Assentamento Itamarati, infelizmente, não é isolado – e até não é dos piores. Há casos de fracasso total do assentamento. A lição a extrair é que, se um assentamento na Fazenda Itamarati – anteriormente, um paradigma internacional de competitividade e eficiência econômica – redundou em fracasso, não se pode ter qualquer expectativa positiva, continuando a exercitar o modelo atual. É necessário buscar alternativas, cujo foco seja a sustentabilidade.

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Alimentando com energia

O Governo do Estado do Paraná ultima a criação do Programa Paraná Bioenergia, com o objetivo de induzir e fomentar o aproveitamento da biomassa para produção de energia e de alimentos, bem como para outros fins, no Estado do Paraná. Uma das vertentes em análise é a organização das comunidades agrícolas para a produção de oleaginosas, a obtenção de biocombustíveis e de alimentos, além de outros produtos, que sirvam como fontes de renda e de empregos na área rural.   A lógica do programa é a substituição, progressiva, do uso de petrodiesel por biocombustíveis derivados do óleo vegetal. A agricultura de energia possui o condão de abrigar a todos, sob seu enorme teto. Os grandes empresários aproveitarão a oportunidade para promover a substituição do petrodiesel, em larga escala, inclusive com a exportação do biocombustível. À pequena produção cabe um nicho importante, que é a oferta do produto no mercado local, inclusive o auto-abastecimento de biocombustível para as suas máquinas.   Atrelado à extração do óleo e sua utilização como combustível, tenciona-se ancorar uma linha de agro-industrialização para agregar valor à torta das oleaginosas, seja por sua transformação em proteínas animais ou em produtos alimentares destinados ao consumo humano. No futuro, a ambição é ainda maior, pois projeta-se extrair da biomassa outros produtos e utilidades que atendam as demandas dos consumidores.

A proposta em gestação contempla a criação da Rede Paranaense de Pesquisa e Transferência de Tecnologia em Bioenergia, que visa dar o adequado suporte científico e tecnológico para o Programa. O seu público preferencial será a agricultura familiar, podendo ser proveniente de assentamentos de reforma agrária ou pequenos agricultores que já detenham a posse de sua terra. Assim, promove-se o encaixe das políticas públicas para garantir a sustentabilidade de uma proposta de geração e distribuição de renda e de criação de empregos.   Proposta semelhante foi efetuada à Eletrobrás, para substituir o petrodiesel utilizado nas termoelétricas da Região Amazônica e do Nordeste do país por derivados de óleos vegetais, obtidos diretamente pelas comunidades beneficiadas com termoelétricas. Iniciativas como a da Eletrobrás ou a do Paraná Bioenergia encaminham, adequadamente, diversas questões de cunho social, econômico, mercadológico, ambiental e estratégico. A Embrapa vem investindo há alguns anos tanto no estudo de oleaginosas e sua adequação para produção de energia e de alimentos, tendo desenvolvido, em parceria com a UnB um equipamento simplificado para obtenção de derivados de petróleo (óleo diesel, gasolina, querosene de aviação e GLP), provenientes de óleos vegetais, viabilizando o seu uso na propriedade familiar.

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Reforma agrária privada

O empresário Nelson Silveira é sócio-diretor da Enguia, uma empresa geradora de energia elétrica a partir de termoelétricas. Recentemente, participamos de um seminário no Centro de Pesquisas da Eletrobrás (CELPE), patrocinado pela estatal. Na oportunidade o empresário apresentou um projeto ousado e visionário, que merece uma reflexão cuidadosa, não apenas sob o enfoque econômico ou energético, mas como uma alternativa ao modelo de reforma agrária predominante.   A Enguia pretende substituir o petrodiesel utilizado nas suas termoelétricas por biocombustíveis, produzidos localmente. O projeto é ambicioso e inclui instalações para atender a demanda de 310 milhões de litros de biodiesel, por ano, necessários para gerar 800 MW de energia elétrica. Com essa produção, é possível manter em operação os geradores da empresa, durante quatro horas diárias, fornecendo energia elétrica ao sistema interligado.   O uso de biodiesel permite eliminar a emissão de gases de efeito estufa, reduzir a dependência brasileira de petróleo, movimentar a economia regional e, adicionalmente, investir na inclusão social de famílias de sem terra, atingidas pelo desemprego. Para tanto, por mais herético que possa parecer, o MST será um dos parceiros do empreendimento.

A empresa propõe-se a adquirir 540 mil hectares de terra no Nordeste, aptos ao cultivo de oleaginosas e de outras culturas, ao longo dos cinco anos previstos para a implantação do empreendimento. A área total será subdividida em projetos de 10.000 ha, comportando 560 famílias em cada projeto. Também será de responsabilidade dos empreendedores a compra dos equipamentos e insumos, o preparo inicial do lote e o primeiro cultivo da área. O projeto prevê a assistência técnica e gerencial às micro-empresas familiares e o treinamento constante e intensivo dos participantes.    

A iniciativa pretende assentar 30.260 famílias, em módulos de 18 ha, sendo cada família organizada em forma de microempresa. O empreendimento compreenderia, no total, mais de 200.000 postos de trabalho, ou 2% da promessa de empregos da proposta de campanha do Presidente Lula. Ao final de 10 anos de cultivo da terra, desde que cumpridos os dispositivos contratuais, a família receberia o título de posse definitiva da terra.

  As condições incluem a obrigatoriedade do cultivo de uma oleaginosa (mamona, por exemplo) em 15 hectares, podendo o espaço intercalar ser ocupado por outros cultivos, assim como nos restantes três hectares, que podem ser plantados com milho, arroz, feijão, caupi, algodão, frutas, hortaliças ou forrageiras. A mamona colhida deve ser entregue, integralmente, à usina de processamento da Enguia, para a produção de biocombustível. Os demais cultivos ou criações podem ser utilizados para auto-consumo ou comercializados, de acordo com os interesses de cada família assentada.

A empresa garante, além do acesso à terra, uma renda mensal mínima equivalente a um salário mínimo, a partir do primeiro mês da instalação da família no projeto, independente do início da entrega da mamona. Entretanto, os cálculos da empresa apontam que cada família poderá receber R$450,00 mensais, pela entrega da mamona, R$250,00 com a venda de feijão, além de outras rendas. Compare-se esses números com os obtidos no Assentamento Itamarati para aquilatar a sustentabilidade da proposta.

 

  O projeto é mais amplo e mais complexo que a análise superficial aqui apresentada. Em nosso entender, ele merece uma atenção séria dos órgãos governamentais, bem como de lideranças empresariais, pois pode constituir-se em alternativa para enfrentar o desemprego e o problema de acesso à terra. Caso o Governo e as empresas decidam adotar políticas de substituição de petrodiesel por biocombustíveis, provenientes de alguma forma de associação de comunidades de agricultura familiar, estaremos organizando um novo pacto social, da mais profunda repercussão no futuro do país, com desdobramentos de âmbito internacional. Afinal, o desemprego é a preocupação de dez entre dez governantes!

 

Classe de área total (ha)

Total de imóveis

% do total de imóveis

Área
 total
(ha)

% do total da área

Tabela 1 – Estrutura Fundiária do Brasil - 1998

Menos de 5

1.780.052

36,7918

3.461.663

0,9789

5 a menos de 10

622.320

12,8627

4.420.526

1,2501

10 a menos de 50

1.516.112

31,3364

35.237.832

9,9651

50 a menos de 100

400.375

8,2753

27.455.753

7,7644

100 a menos de 500

411.557

8,5064

83.355.220

23,5726

500 a menos de 1000

58.407

1,2072

40.186.297

11,3645

1.000 a menos de 5.000

43.486

0,8988

83.173.886

23,5213

5.000 a menos de 10.000

3.688

0,0762

24.997.369

7,0692

10.000 a menos de 100.000

2.147

0,0444

43.031.313

12,1691

Mais de 100.000

37

0.0008

8.291.381

2,3448

TOTAL

4.838.181

100,0000

3353.611.241

100,0000

Fonte: Censo Agropecuário de 1996 (www.ibge.gov.br – 05/12/2002.

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Biocombustíveis, as múltiplas oportunidades

Décio Luiz Gazzoni

Nos dias 12 e 13 de agosto ocorre, na UEL, o I Seminário Paranaense de Biodiesel. Em 23/10/98 escrevi, neste mesmo espaço "...A insônia de 9 entre 10 presidentes de nações do mundo é causada pelo desemprego (a do outro é causada pela Monica Lewinsky)". Mr. Clinton não é mais presidente, logo o desemprego é a primeira preocupação de dez entre dez líderes mundiais.   O que não significa que a preocupação se desdobre em ações concretas para resolver o problema, por parte destes governantes. Mas o que tem a ver o seminário com o desemprego? Ocorre que o aproveitamento de biocombustíveis, derivados de biomassa, abre um leque de oportunidades, as quais, corretamente apropriadas pelos governantes, auxiliam a solver problemas da sociedade moderna, aparentemente dissociados entre si.

 

Oportunidade econômica e comercial
A geração de energia de fontes renováveis será um dos mais importantes negócios do mundo, sucedâneo do complexo energético e químico baseado no carbono fóssil. Analistas estimam que a agricultura de energia será responsável pelo maior volume financeiro das transações do agronegócio internacional. E o Brasil, por suas vantagens comparativas, é o país com melhores condições para liderar a produção mundial de bioenergia.

 

  Oportunidade ambiental
A elevada participação de combustíveis fósseis na matriz energética é um dos maiores perigos à qualidade ambiental, amplificando o efeito estufa, provocando "chuvas ácidas" e poluindo a atmosfera com substâncias deletérias à saúde. Em não havendo uma intervenção a tempo e a hora, os cientistas prevêem uma seqüência catastrófica de mudanças climáticas, com conseqüências imprevisíveis, colocando em risco a sustentabilidade de diversas atividades desenvolvidas pelo homem.
  Oportunidade Tecnológica
O Brasil pode consolidar sua liderança em tecnologia para o agronegócio tropical, constituindo uma plataforma com poder de induzir inovações em outros setores de C & T. O Paraná, especificamente, deve organizar uma rede de pesquisa e transferência de tecnologia em bioenergia, condição indispensável para que possa apropriar-se, de forma competitiva, das demais oportunidades decorrentes do cultivo de biomassa.

 

 

Oportunidade Estratégica
Ancorado em um agronegócio potente e com uma imagem positiva, associada à proteção ambiental, o Brasil magnificará seu peso específico no concerto das Nações, potencializando nosso poder de negociação em relação ao presente. O Brasil poderá, no médio prazo, reduzir sua dependência de petróleo a um plano marginal. Isso desatará um dos nós górdios da nossa dependência externa. Por outro lado, tornará o País, quiçá, o maior exportador mundial de energia. Serão os biodólares, contraponto dos atuais petrodólares. Ou, quem sabe, bioreais?

 

  Oportunidade Social
Esta é a faceta que mais me excita. O desafio da sustentabilidade da agricultura familiar, até agora insolúvel, pode encontrar na bioenergia a solução para o seu Teorema de Fermat. Até o pequeno produtor europeu, um privilegiado, somente mantém sua inserção social com pesadíssimos subsídios, evitando que ele engrosse as estatísticas do desemprego. Retire-se o tubo dos subsídios e 90% dos agricultores europeus passarão a compor a marginália social de seus países. No Brasil das finanças governamentais falidas, subsídio é heresia. Resta criar empregos e gerar e distribuir renda mediante a agregação de valor e investimento em setores da agropecuária de alto valor intrínseco.

Políticas públicas
Problemas complexos exigem pensar e agir grande, atributo de líderes destacados. Cientistas da UEL, UEM, IAPAR, Emater e Embrapa têm feito sua parte, debruçando-se, quotidianamente, sobre o problema. De suas reflexões surge a proposta de que o governo alinhe suas políticas públicas e use seu poder de compra para alavancar a agricultura familiar, com fulcro nos biocombustíveis.
  Investindo na produção de biomassa, por meio da organização comunitária de pequenos agricultores, haverá aumento da renda local, eqüitativamente distribuída, geração de grande número de empregos, com baixo investimento, ampliando a arrecadação tributária para aplicação em saúde, educação, habitação e segurança. A união de todos os institutos de pesquisa e as universidades do Paraná, na forma de uma grande rede de C & T, conferirá o suporte tecnológico para que essa oportunidade se transforme em realidade.

Sojadiesel e alcoolquímica

Décio Luiz Gazzoni

Analistas do setor energético convergem na premissa da finitude das reservas de gás, petróleo e carvão, discordando apenas ao estimar o prazo final. Porém, na hipótese mais otimista, essas reservas estariam comercialmente esgotadas ao alvorecer do século XXII. Na procura por um sucedâneo, as oportunidades que se abrem para o Brasil são espetaculares, pois o petróleo é utilizado tanto para produção de energia, como serve de insumo para a quase totalidade da indústria química. Monômeros, polímeros, plásticos, medicamentos, agrotóxicos, perfumes e um amplo leque de produtos consumidos pela sociedade moderna dependem do petróleo para sua fabricação.   Demandas
O maior consumo potencial se concentra na produção de energia elétrica; no aquecimento de casas e outras edificações, em países com invernos rigorosos; e nos combustíveis líquidos, usados principalmente para o transporte. Em termos de combustíveis líquidos, o Brasil reúne as condições para liderar a oferta mundial de álcool, a partir da cana-de-açúcar e de outras plantas amiláceas; e de biodiesel, baseado em oleaginosas como soja, girassol, colza, amendoim, dendê ou babaçu. O mercado de biomassa florestal é adequado para uso na geração de calor, para o aquecimento de residências e de outras edificações. Também pode ser útil para a geração de energia elétrica, por meio de plantas de conversão.
 

Álcool
A biomassa pode suprir esta lacuna, com alternativas adequadas a todos os usos. Para substituir combustíveis líquidos, o programa brasileiro do álcool (Pró-Álcool) demonstrou a viabilidade de seu uso como combustível, tanto isoladamente, quanto em mistura com gasolina. A tecnologia de produção de cana de açúcar e de fabricação de álcool evoluiu, acentuadamente, nos últimos anos, tornando o produto francamente competitivo no mercado internacional, tanto sob a óptica financeira quanto tecnológica. A co-geração de álcool e energia elétrica (a partir do bagaço de cana) e a tecnologia de extração de álcool da palhada e do bagaço de cana, forneceram um lastro extra de competitividade para o produto brasileiro.
  Engenharia mecânica
Também a tecnologia dos motores evoluiu consideravelmente, permitindo o lançamento de veículos equipados com sensores eletrônicos que identificam a proporção da mistura álcool e gasolina. Os sensores efetuam automaticamente os ajustes para otimizar o desempenho do motor, sob qualquer condição, desde a operação com álcool puro até a gasolina pura. Esta tecnologia deve dar o impulso definitivo à substituição da gasolina por álcool, pois elimina a incerteza em relação à garantia de abastecimento. O álcool também é um sucedâneo de aditivos incorporados aos combustíveis, como o MTBE, utilizados para melhorar a octanagem.
 

Biodiesel
As oleaginosas (dendê, mamona, soja, girassol) podem fornecer matéria prima para a obtenção de biodiesel, através de processos simples de conversão industrial. A Embrapa já dispõe de tecnologia para efetuar a transformação, utilizando um processo diferenciado da transesterificação usada nos EUA, sendo mais simples, barato e com melhor balanço energético. O biodiesel substitui, adequadamente, o petrodiesel, em termos de desempenho e balanço energético, possuindo a vantagem adicional de não emitir gases sulfurosos, um potente poluidor da atmosfera. E, tanto o álcool, quanto os óleos vegetais, podem ser sucedâneos do petróleo no fornecimento de substâncias orgânicas para uso na indústria química.
  Matéria-prima
A indústria química necessita das cadeias de carbono de substâncias orgânicas, para promover a sua transformação industrial. A matéria-prima atual depende de petróleo. Com a previsão do declínio de sua oferta, as grandes empresas químicas mundiais, responsáveis pela fabricação de monômeros, polímeros, elastômeros e outras substâncias que dão origem a plásticos, tintas, explosivos, agrotóxicos, medicamentos, estão investindo em alternativas. Os seus departamentos de pesquisa perscrutam, principalmente, a biomassa, pelo seu baixo custo e pela possibilidade de oferta continuada em grande escala. Adicionalmente, com técnicas de biotecnologia, será possível "desenhar" uma planta em laboratório, para que a matéria prima produzida esteja tão próxima do produto final quanto possível. Caso essa seja a estratégia adotada, o Brasil será duplamente beneficiado: além de fornecer matéria prima, o agricultor estará agregando valor ao produto dentro da porteira da fazenda.

Quinoa e Amaranto

Décio Luiz Gazzoni

O leitor já deve ter reparado uma advertência nas embalagens de alimentos: contém glúten. E talvez se tenha perguntado: e daí? Que diferença faz? O glúten é uma proteína insolúvel, encontrada no trigo, centeio, cevada e aveia. Quando ela reage com um álcool, forma proteínas menores. Se um portador da doença celíaca, que é uma inflamação do intestino delgado, de fundo genético, ingere glúten, os sintomas da doença podem surgir. A quem se interessa por citogenética, essa predisposição está relacionada a um antígeno de histocompatibilidade da região "d" do cromossomo seis. Geralmente, a doença manifesta-se em crianças de dois anos, quando o glúten é introduzido na dieta. Entretanto, a doença celíaca pode começar em qualquer idade.

Doença celíaca
A principal função do intestino delgado é absorver nutrientes, fluidos e eletrólitos, um processo que depende de uma área de absorção adequada. Para tanto, o epitélio do intestino delgado é pregueado. Em indivíduos suscetíveis, o glúten desencadeia uma reação inflamatória no intestino delgado, que "achata" o epitélio, reduzindo a absorção. A extensão do comprometimento determina se o indivíduo com doença celíaca desenvolverá os sintomas, que incluem fraqueza, diarréia, perda de peso, fadiga e anemia. Pode ocorrer osteoporose, tetania e desordens neurológicas. Bolhas, vermelhidão ou estrias avermelhadas podem ser observadas no corpo.
  Grãos sem glúten
O indivíduo com predisposição à doença celíaca corre riscos ao ingerir glúten
. Mas como não o fazer, se os pães, massas e bolos são preparados com farinhas que contêm glúten? Este foi o desafio enfrentado por um grande amigo meu, o Dr. Carlos Spehar, cientista da Embrapa Cerrados, de Brasília. Na busca de solução, ele pesquisou uns vegetais muito pouco conhecidos. Um se chama quinoa e o outro amaranto. Eles são pseudocereais, porque sua composição lembra muito os cereais. A quinoa é originária dos Andes, existindo registro de seu cultivo e uso alimentar há mais de cinco mil anos. O Dr. Carlos pesquisa a quinoa há dez anos e seus resultados já se transformaram em alternativa de cultivo para os agricultores. Da quinoa podemos produzir farinhas, cereais matinais, massas e biscoitos para consumo humano. Na alimentação de animais, como suínos e aves, o grão apresenta vantagem sobre o milho ou a soja, com proteína de alto valor biológico. Como energético, é comparável ao milho.

     
Alternativas
Apesar de altamente protéicos, os grãos não possuem glúten, são facilmente digeríveis, o que ajuda na recuperação de crianças convalescentes e no preparo de refeições para idosos. E, obviamente, na formulação de dietas para celíacos. Os vegetarianos, seguramente, serão atraídos pela novidade. Outro nicho de mercado é o dos fisiculturistas. O Dr. Carlos salienta que, ‘‘quando os adeptos da musculação repõem proteínas com a quinoa e o amaranto, correm menos riscos — como o entupimento de veias e problemas cardíacos — do que comendo carne, por exemplo’’. Se no Brasil a Embrapa está introduzindo a novidade, no Peru e na Bolívia, centro de origem da quinoa, o frio tornou comum o uso em sopas ou cozida com carne. O amaranto tostado é usado como bebida. No México, uma espécie de torrone feito com caramelo e com as sementes, é típico na época da páscoa. Nos supermercados dos Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra, é possível encontrar o grão ou alimentos preparados com quinoa ou amaranto.
  Macarrão de quinoa
O trabalho da Embrapa incentivou a dissertação de mestrado denominada "Desenvolvimento e avaliação de massa tipo macarrão, à base de milho e quinoa, para celíacos", conduzida na Unicamp. A experiência é pioneira no Brasil, embora um produto semelhante já esteja disponível no mercado americano
. A comercialização do macarrão nos EUA aponta para um mercado consumidor ainda não explorado no Brasil. A mestranda Luciana Caperuto realizou um teste de aceitação sensorial entre pessoas não portadoras da doença celíaca. Ela constatou que 67% do grupo reunido por ela atribuíram nota 7 ou maior (escala de 0 a 9) para o sabor do macarrão. Das pessoas que compunham o grupo de teste, 70% mostraram-se dispostas a comprar o produto, caso estivesse à venda. Pacientes celíacos, vegetarianos e outros segmentos da sociedade vão comemorar a melhora na qualidade de vida obtida com pesquisas como as da Embrapa e da Unicamp.

A regulamentação da biotecnologia

Décio Luiz Gazzoni

A biotecnologia se encontra em moratória no Brasil desde a concessão da liminar da Justiça Federal ao ato da Comissão Técnica Nacional de Biotecnologia, que autorizava, de forma condicionada, o cultivo e a comercialização de cultivares de soja contendo o gene RR. Um emaranhado legal conflitante vem impedindo, na prática, o desenvolvimento de pesquisas biotecnológicas, pela diversidade e complexidade das exigências impostas às atividades de C & T que envolvem biotecnologia.   Entretanto, a face mais deletéria da moratória informal foi o crescimento acelerado do plantio de soja RR, ao arrepio da determinação judicial. Na prática, não existe legislação que proíba o plantio ou a comercialização de OGMs. A pendenga legal trata de uma disputa sobre a competência legal para autorizar o plantio de OGMs. A Lei 8974, que criou a CTNBio, confere à Comissão esta prerrogativa, a qual foi referendada pelo Decreto 1752, de 20/12/1995 (Artº. 2º., X - emitir parecer técnico prévio conclusivo sobre qualquer liberação de OGM no meio ambiente, encaminhando-o ao órgão competente). Entretanto, a ação movida pelo IDEC questionou esta disposição legal, entendendo ser necessária a realização de um EIA-RIMA.

Regulamentação
Política é a arte de administrar conflitos e posições aparentemente inconciliáveis. O titubeio legal ultrapassou a razoabilidade temporal e o Brasil precisa descer do muro – e com urgência - para conferir clareza e transparência às nossas práticas comerciais. Louve-se, portanto, a iniciativa do Governo de enviar ao Congresso uma proposta de legislação para consolidar a regulamentação da matéria.
  O Brasil está tornando realidade sua grande vocação agrícola, rumo à liderança do agronegócio internacional. Na condição de ator marginal, a posição dúbia do Brasil, no tocante aos OGMs, até poderia obter condescendência. Entretanto, com o nosso peso específico atual, e com as perspectivas futuras que se abrem, a comunidade internacional pressionará, veementemente, por uma definição oficial.
 

Se hoje sofremos apenas com o constrangimento de "ser, não sendo", ou "não ser, sendo", brevemente enfrentaremos sérias barreiras comerciais até assumirmos, com transparência, se permitimos ou não o cultivo e a comercialização de OGMs no território nacional. Outro possível constrangimento será a cobrança, em foros internacionais, dos roialties devidos pela utilização de tecnologia protegidas.   Tenho dito, e aqui reafirmo, que a moratória de cinco anos no plantio de OGMs no Brasil, foi tempo mais do que suficiente para efetuar o balanço dos prós e dos contras, dos impactos ambientais e na saúde humana, dos ganhos de competitividade, dos custos e dos eventuais ganhos de qualidade nutricional e terapêutica de plantas transgênicas. Não condiz com a grandeza do agronegócio nacional postergarmos uma decisão sobre um tema crucial da produção agrícola.

Reflexões

A sociedade mundial discute o florescer de um novo paradigma tecnológico, pautado no uso intensivo da biotecnologia, que deverá desempenhar o mesmo papel que a Química e a Biologia teve, em passado recente. Os impactos dos avanços biotecnológicos equivalem à descoberta da eletricidade, aos quais, de alguma forma, toda a sociedade estará submetida.   O Brasil pode ser o nó destoante dessa rede? Em tese pode, sem dúvida alguma. Dispomos de talentos e de capacitação científica para dar conta de mais esse recado. Com investimentos maciços nas equipes dos institutos agrícolas, médicos e farmacêuticos do Brasil, a sociedade sinalizaria que a busca de um caminho alternativo é a melhor saída para o nosso país. Nesse caso, por definição, será forçoso abandonar qualquer caminho que signifique a emulação dos avanços biotecnológicos ocorridos no exterior.   O fulcro desta análise aponta para uma absoluta e completa reversão de atitude: ao invés da miséria e do abandono a que estão relegados a maioria dos institutos científicos do Brasil, será necessário manter um fluxo continuado e sustentável de bilhões de reais, anualmente, para que possamos trilhar o caminho do desenvolvimento ancorados em outro paradigma tecnológico.

Controle social

O controle social se manifesta, de forma definitiva, através da legislação. O impulso natural do cientista é romper fronteiras, tornar o aparentemente insondável no paradigma dominante. Entrementes, enquanto cidadão, como progenitor e parte da consciência coletiva, o cientista também pugna por um debate comprometido e aprofundado sobre a velocidade que se deve imprimir ao avanço da ciência, os seus limites e os parâmetros de segurança que devem ser observados.   Em artigo recente, lancei o libelo "as novas ferramentas biotecnológicas podem conferir ao Homem um poder que era exclusivo de Deus. Terá o Homem a mesma inteligência, ponderação, clarividência, parcimônia e bom senso em seu uso?" Com isso quero significar que o avanço científico deve ser acompanhado pelo debate de suas implicações e pela compreensão de seus impactos.

Debate e sofismas

O debate deve ser lastreado em fatos e evidências irrefutáveis. Muito se comentava a respeito dos problemas enfrentados pelos exportadores, para colocar a soja RR no mercado europeu. Aproveitei a realização do II Congresso Brasileiro de Soja para introduzir essa discussão, em um foro onde não haveria espaço para sofismas, dada sua especialização e privilegiado nível de informação.   Da discussão transpareceu que a Argentina, terceiro maior produtor de soja do mundo, tem toda a sua produção lastreada em cultivares transgênicas. No final da década de 90, a Argentina aumentou sua exportação de grãos e quadruplicou a de farelo de soja para a Europa, sem entraves comerciais, devido ao fato de exportar soja RR. A Europa também importa soja americana, com as mesmas características.   Transpareceu também que o prêmio por soja certificada como não OGM, insinuado na mídia, ou é inexistente ou não cobre os custos da segregação, da certificação e do processo de rastreamento. Com esses exemplos quero mostrar que debater não significa lançar argumentos esparsos e insustentáveis, menos ainda prolongar ad aeternum uma discussão que se esgotou.

Domínio de mercado

Um debate sobrevive das lições que encerra. Tenho comigo uma máxima, que reza mais ou menos o seguinte: "Não importa o quão bom você era no paradigma anterior: a mudança de paradigma nivela os competidores na reta de largada". Costumo usar como exemplo a derrocada da indústria suíça de relógios, movidos a corda manual, em virtude do ingresso avassalador da tecnologia do quartzo, francamente dominada pelos japoneses, fenômeno inadmissível para os suíços, até três anos antes da catástrofe.   Jeffrey Sachs provocou, em um ensaio recente: "A ciência e a tecnologia foram cruciais no desenvolvimento dos países ricos. E elas serão vitais também na luta contra a pobreza". Os desdobramentos comerciais dos avanços científicos são os responsáveis diretos pela velocidade de apropriação tecnológica, por sua vez indutores da competitividade e da supremacia comercial.   Ocorre que os avanços tecnológicos apresentam desdobramentos que vão além da remuneração do capital e da conquista de mercados. Novos medicamentos significam melhor qualidade de vida e as novas oportunidades comerciais também se desdobram em renda, emprego e progresso.

Agronegócio

Os impactos negociais e as oportunidades derivadas da biotecnologia são plurais. Entretanto, no Brasil, a discussão se encontra fortemente enviesada, pelo foco excessivo na soja RR. É mister que se abra o foco, analisando outras vertentes, como o tomate e a pimenta com controle do amadurecimento na prateleira, a batata e o tomate com menos água, grãos como milho e soja com maior teor de aminoácidos essenciais e outros nutrientes, café com menor teor de cafeína, milho e ervilha mais doces, melhoria da qualidade do óleo em oleaginosas e produção de plásticos biodegradáveis a partir de soja e fibras de cana de açúcar, até chegar as bio-fábricas, verdadeiras usinas de medicamentos.  

Assestando a luneta para os concorrentes, vemos que a área coberta por variedades transgênicas já atinge dezenas de milhões de hectares nos EUA e outros milhões na Argentina, Canadá, México, Austrália e China, cultivados com soja, milho, algodão, canola, batata e tomate.

Este uso extensivo da tecnologia significa ganhos financeiros diretos. Porém, enorme importância deve ser conferida à vantagem competitiva da liderança na inovação tecnológica, para a conquista e ampliação do mercado e seus decorrentes benefícios sociais. Em suma, sobreviverá o agronegócio brasileiro à margem da corrente tecnológica dominante? Conseguiremos financiar o desenvolvimento de tecnologia alternativa, essencialmente nacional? Essa é a discussão que interessa e ela deve balizar a política oficial do país.

 

Padrão de consumo

Esperança de compatibilizar oferta e demanda de alimentos e fibras no futuro próximo, a discussão sobre OGMs deve ser encarada sob uma ótica multi-facetada. Por um lado, existe um relógio que não para, o da demanda por produtos agrícolas, com fulcro no crescimento demográfico (países pobres e em desenvolvimento) e no aumento da renda (países ricos).   Deveremos produzir alimentos para 10 bilhões de pessoas em 2025, 70% delas vivendo em países que hoje não possuem perspectivas de oferecer alimentação digna a seus cidadãos. Para efeito de raciocínio, aceite-se que europeus saciados rejeitam o consumo de alimentos transgênicos. Mais um mote para reflexão: alguém se lembrou de perguntar aos 70% de famintos se eles rejeitariam estes alimentos, como alternativa à fome?

 Componente sociológico

O novo e o desconhecido assustam e a sua percepção não é uniforme na tessitura social. Enquanto os cidadãos liberais e empreendedores aplaudem os avanços e as mudanças, enxergando nelas apenas as oportunidades, o segmento mais conservador é refratário à inovação porque, na sua visão, representam apenas ameaças.   O debate é levado ao paroxismo pela polarização. A maioria silenciosa, que forma sua opinião através do debate, busca separar o que é aceitável do inaceitável. O controle social, na sua expressão conceitual mais pura, é o resultado consensuado do debate. Como em temas apaixonantes consenso é utopia, busca-se a negociação, a composição ou, in extremis, prevalece a posição do agrupamento com maior poder de pressão política.   No tema em tela, a consciência política adveniente do debate permitirá formular o controle social, a avaliação e a administração dos riscos, através das normas de biossegurança, sem aniquilar o futuro. Como a linha do tempo não admite moratória, e os nossos concorrentes diretos no agronegócio estão investindo pesadamente para liderar a corrida tecnológica, entendo que o investimento em C & T deve ser concomitante à discussão. Caso contrário, quando a sociedade encontrar seu rumo, nossos concorrentes estarão anos luz à nossa frente, uma vantagem científica e comercial irrecuperável.

Inovação na produção de álcool

Décio Luiz Gazzoni

O Brasil é o maior produtor de álcool do mundo, com 12,5 bilhões de litros, extraídos de 350 milhões de toneladas de cana-de-açúcar, plantadas em quatro milhões de hectares. O rendimento médio é de 6 mil litros de álcool/hectare. Com as atuais rotas tecnológicas, é possível incrementar o rendimento de álcool por hectare, aumentando-se a produtividade da cana ou o seu teor de açúcar. Porém, uma inovação tecnológica permite aumentar a produção de álcool, com a produtividade e o rendimento atuais da cana-de-açúcar.

Inovação
A tecnologia DHR (Dedini Hidrólise Rápida) pode elevar a produção de álcool em 30%, tendo sido desenvolvida pela Dedini S/A, no Centro de Tecnologia (CTC), da Copersucar. A DHR consiste no tratamento físico-químico do bagaço ou da palhada de cana, para hidrolisar a lignina. Esse composto é um polímero, de alto peso molecular, existente na parede da célula vegetal, que não é afetado pelos tratamentos químicos ou mecânicos rotineiros da tecnologia de obtenção de álcool. Havendo a dissolução da lignina, tanto esse composto quanto a celulose e a hemicelulose são tratados em meio ácido e transformados em açúcares, como glicose, galactose, manose e xilose, os quais, através de fermentação, são transformados em álcool.
  Processo
O processo completo é segredo industrial, patenteado no Brasil e em diversos outros países. Entretanto, ele consiste em hidrolisar o bagaço, em meio ácido, com temperatura definida. Para facilitar a hidrólise, a lignina é dissolvida em álcool, acetona ou dioxano. Uma vez completado o processo, o solvente é recuperado, através de evaporação, para reutilização no processo. Extraído o solvente, resta uma solução aquosa de açúcares, lignina e os ácidos utilizados na hidrólise. A parcela contendo os açúcares solúveis é fermentada e destilada, obtendo-se o álcool, enquanto o resíduo tem aproveitamento como combustível.

 

 

 

  Vantagens
A inovação rompe as barreiras que limitavam a expansão da produtividade de álcool e o intercâmbio de uso do bagaço entre caldeiras, co-geração de energia elétrica e produção de álcool. A nova tecnologia permite aumentar a produção de álcool entre 7,5 a 11 bilhões de litros adicionais, a cada ano, sem aumentar a área plantada, ampliando a margem de competitividade do álcool em relação à gasolina. O aumento da oferta de álcool e a estabilização em patamar elevado, permite um ganho ambiental, pois o álcool reduz as emissões veiculares e não contribui para o efeito estufa, pois o gás carbônico produzido na queima do álcool é totalmente absorvido pela cana, em seu crescimento.

 

 

 

Ganhos
Os produtores de açúcar e álcool, em geral, obtém um ganho de 30% na produção de álcool. As usinas que operam exclusivamente com álcool podem ter sua produção duplicada. Nesta safra, o custo de produção de álcool (dentro da usina) é estimado em R$0,40/litro. A equipe técnica que desenvolveu o DHR estima que, com a nova tecnologia, e com os aperfeiçoamentos que advirão do uso industrial em larga escala, será possível reduzir o seu custo para R$0,25, a valores presentes. Do ponto de vista estratégico, a usina também aumenta sua flexibilidade operacional, podendo intercambiar a produção de açúcar, de álcool e de energia elétrica, adequando-se à demanda do mercado. Por exemplo, havendo super-oferta de energia elétrica no sistema interligado, o bagaço destinado à co-geração pode ser redirecionado para a produção de álcool.
  Perspectivas
Com a DHR, a produtividade esperada do álcool alça-se de 100 litros/t bagaço, com 50% de umidade, para 160 l/t. O Brasil mói 300 milhões de toneladas de cana por ano, gerando 80 milhões de toneladas de bagaço. Desse total, 73 milhões são queimadas para geração de vapor e energia elétrica. Teoricamente, restariam oito milhões para obtenção de álcool com a DHR. Entretanto, considerando que, no futuro, as exigências ambientais determinam a colheita da cana sem queimá-la, duplica-se a biomassa a ser utilizada. No final, a palha poderá deslocar de 40 a 60 milhões de toneladas de bagaço das caldeiras para o DHR, indepententemente do aumento da área plantada e da produtividade que, seguramente, também crescerão, nos próximos anos. Além do álcool, o uso do DHR permite obter substâncias como a lignina e o furfural. A lignina possui uso energético, na elaboração de resinas sintéticas e como aglomerante de placas e painéis para móveis. O furfural pode ser usado para produção de nylon 6-6 e diversas substâncias orgânicas de alto valor agregado.

Agricultura e a tolerância a estresses

Décio Luiz Gazzoni

Existem três grandes restrições à expressão do potencial produtivo das plantas cultivadas. A primeira é de origem biótica, representada pelas pragas (insetos, fungos, bactérias, nematóides, vírus, plantas invasoras, etc). As duas outras são abióticas, sendo uma delas climática (seca, temperaturas inadequadas, excesso de chuva, granizo, etc) e a outra ligada às condições do solo (salinidade, acidez, baixa fertilidade, estrutura ou topografia inadequada, compactação, entre outras).   Os estresses são, em grande parte, responsáveis pelas perdas na agricultura, pela instabilidade da produção rural, pelo alto custo dos seguros agrícolas e, no limite, pela pobreza nas regiões mais afetados por estresses, sejam eles edáficos, climáticos ou decorrentes do ataque de pragas.

Acidez do solo e baixa fertilidade

O alumínio é o metal mais abundante na face da Terra e tem uma ampla distribuição no solo. Esse metal, na sua forma iônica (Al+++), é tóxico às plantas cultivadas. A solubilidade do alumínio no solo é dependente do pH. Em solos ácidos, o alumínio se torna solúvel; em solos com pH próximo da neutralidade, a sua solubilidade é muito baixa. Conforme a FAO, mais de 30% das terras aráveis do planeta constituem-se de solos ácidos, com elevado teor de alumínio tóxico, redundando em baixa produtividade.   Na presença de altos teores de alumínio livre ocorrem danos nas células das raízes, interferindo com o desenvolvimento radicular e com a absorção de nutrientes. O problema é particularmente severo nos solos tropicais e úmidos. Culturas como soja, algodão, milho ou feijão não se desenvolvem bem nessa condição, devido à sua sensibilidade ao alumínio tóxico. A redução de produtividade pode superar 80% para as espécies e cultivares mais sensíveis. O pH mais baixo, além de solubilizar elementos tóxicos, diminui a disponibilidade de alguns nutrientes essenciais para as plantas, sendo outra razão para a baixa produtividade.

Correção da acidez

A solução atualmente disponível é a aplicação de calcário, de forma a elevar o pH do solo e reduzir a solubilidade do alumínio. Ocorre que a aplicação de calcário não é uma panacéia, pois necessita re-aplicações após determinado tempo. Além disso, aumenta o custo de produção e pode contribuir para a poluição causada pela erosão.   Os pequenos agricultores, desprovidos de capital para investimento, são os maiores prejudicados pela acidez no solo. Deve-se levar em conta, também, que as jazidas de corretivos e fertilizantes (calcário, fósforo, potássio) são finitas, devendo se constituir em limitantes futuros para a agropecuária, dentro do paradigma tecnológico atual.

Plantas tolerantes à acidez

Estudos têm sido desenvolvidos para contornar a elevada acidez dos solos, sem o recurso à calagem. Uma pesquisa desenvolvido pela equipe do Prof. Luis Herrera-Estrella (Instituto Politécnico Nacional, Irapuato, México) redundou na identificação de um gene de uma bactéria (Pseudomonas aeruginosa) que codifica para a enzima citrato sintetase (CSb). Os cientistas modificaram plantas de tabaco e mamão, pela introdução do gene, obtendo cultivares altamente tolerantes ao alumínio tóxico.

Os cientistas descobriram que algumas plantas, para desenvolverem-se adequadamente em solos com altos teores de alumínio tóxico, liberavam ácido cítrico pelas raízes, o qual se ligava ao alumínio, formando compostos de mais difícil absorção pelos vegetais. As plantas transgênicas produziam e liberavam entre 4 e 10 vezes mais ácido cítrico que as cultivares originais.

 

As cultivares transgênicas, conduzidas em ambientes com saturação de Al+++, obtiveram bom desenvolvimento radicular. Ao contrário, as cultivares originais (sem transformação) não demonstraram habilidade para a formação de raízes sob essa condição. A análise do tecido radicular demonstrou um teor muito baixo de alumínio, comprovando a teoria dos cientistas.

Além do mamão e do fumo, a equipe do Dr. Herrera-Estrella introduziu o gene em milho e arroz, obtendo resultados similares. Caso essa estratégia seja bem sucedida, e não sobrevenham efeitos colaterais indesejáveis – agronômicos, ambientais ou de segurança dos alimentos – essa descoberta poderá significar um impacto comparável ao ocorrido com a Revolução Verde. Entretanto, o princípio no qual repousa é o antípoda da Revolução Verde, ou seja, aproveita-se o potencial genético da planta, sem o recurso a insumos químicos adicionais.

 

Extração de nutrientes

A equipe do Dr. Herrera também demonstrou que o desenvolvimento pós-embrionário das raízes das plantas é altamente plástico. Essa propriedade permite adaptações de sua estrutura arquitetônica, em conformidade com as condições ambientais, sobretudo à disponibilidade de água e nutrientes do solo.

Utilizando a planta modelo Arabidopsis thaliana, os pesquisadores correlacionaram a disponibilidade de fósforo com o desenvolvimento do sistema radicular da planta. Havendo baixa disponibilidade (P<50 µM), observou-se maior crescimento da raiz principal e maior densidade de radículas laterais. Aplicando-se auxinas e inibidores do transporte de auxinas, verificou-se que essas mudanças estavam correlacionadas com uma sensibilidade mais elevada à auxina, quando há baixa disponibilidade de fósforo.

 

A análise genômica demonstrou que alguns genes mutantes (axr 1-3, axr 2-1, and axr 4-1) têm resposta normal à baixa disponibilidade de fósforo, enquanto outro mutante (iaa 28-1) demonstrou pouca sensibilidade ao estímulo de baixos teores de fósforo, para a formação de radicelas. A análise dos sinais de etileno nos genes mutantes demonstrou que esse gás não interfere com a formação das raízes laterais.

A partir dessas descobertas, a equipe do prof. Herrera desenvolveu plantas transgênicas com maior capacidade de extração de fósforo, sob condições de baixa disponibilidade desse elemento, favorecendo especialmente os pequenos agricultores, que não dispõem de recursos para investir em melhoria da fertilidade do solo. Adicionalmente, será possível reduzir as atuais recomendações de adubação com esse elemento, ampliando o horizonte de uso das jazidas.

Água, recurso escasso

A água se encaminha para ser um dos recursos mais escassos do planeta, já no decorrer desse século. Lideranças de alta belicosidade terão outros motivos, além do petróleo, para promover invasões e guerras de conquista. Não será fantasia se, em um futuro não muito remoto, algum governante paranóico, dispondo de uma máquina de guerra apreciável, resolva declarar guerra ao Brasil, por um motivo fútil qualquer, porém de olhos postos nos 25% de reserva de água doce mundial, estocados na Amazônia e adjacências. E que, de quebra, também detém a maior reserva da biodiversidade mundial ainda inexplorada e o maior potencial de produção de biomassa, para geração de energia.

Ao final do século XX, cerca de 450 milhões de pessoas não dispunham de água suficiente para suas necessidades. Em 2025, esse número deve crescer para 2,7 bilhões de pessoas, um quarto da população do mundo projetada para aquela data, mantidos os atuais padrões de consumo e as tecnologias de utilização da água.

 

Entretanto, diversas iniciativas para reduzir a fome endêmica que assola determinadas regiões do planeta, tendo como fulcro a maior oferta de alimentos, assim como o atendimento da demanda natural decorrente do crescimento vegetativo da população e de sua renda, prevêem um incremento da demanda de água para uso agrícola, entre 15-20%.

Essas iniciativas meritórias, destinadas a reduzir a pobreza e a indignidade de cidadãos do andar de baixo da sociedade mundial, têm como conseqüência o conflito com entidades ambientalistas. Essas pregam a redução de, no mínimo, 10% do consumo mundial de água nos próximos 25 anos, para reduzir o depauperamento irreversível das fontes de água doce.

Agricultura e seca

A irrigação é a forma mais tradicional e efetiva de garantir a disponibilidade de água para os cultivos. Entretanto, quando não há fonte de água disponível para irrigação, outras soluções são necessárias. Uma delas é o desenvolvimento de cultivares com maior capacidade de extração de água do solo, ou que a utilize com maior eficiência.

A experiência dos agrônomos demonstra que, embora seja possível obter cultivares que produzam relativamente bem em condições adversas, elas não são competitivas com cultivares normais, na ausência de déficit hídrico. Ou seja, cultivares selecionados sob estresse hídrico demonstram ser pouco produtivas quando a oferta de água é adequada.

 

 

Existem diversos mecanismos envolvidos com a adaptação das plantas ao estresse hídrico (Tabela 1), porém muitos deles não estão convenientemente entendidos e estudados. Os mecanismos mais importantes são a arquitetura do sistema radicular, a morfologia das folhas, os caracteres fisiológicos das plantas, como os ajustes osmóticos, o acúmulo de prolina, a taxa de acúmulo de matéria seca (índice de colheita) ou o ciclo de desenvolvimento da planta. Tem sido observada uma alta correlação entre a tolerância ao calor e a adaptação a ambientes de estresse hídrico, sugerindo que ambos os mecanismos estão fortemente associados.

O desenvolvimento de cultivares tolerantes à seca, através do melhoramento convencional, enfrenta limitações como a escassa variabilidade genética intra-específica, a demora na fixação dos caracteres e os antagonismos entre características agronômicas. Também existe a dificuldade metodológica de garantir uniformidade de estresse hídrico ao conjunto de genótipos em teste, ou para estudos envolvendo o sistema radicular, que sempre resultam em elevados coeficientes de variabilidade.

Cultivares tolerantes à seca

A análise genética de algumas culturas sugere que  poucos genes podem controlar os mecanismos independentes de tolerância à seca. Estudos mais profundos, com marcadores genéticos, revelam que a variabilidade para resposta ao estresse hídrico associa-se a um ou poucos lócus de caracteres quantitativos (QTL). O cruzamento, com o auxílio de marcadores de DNA, pode ser um método para obter cultivares tolerantes à seca com maior rapidez e eficiência que os métodos tradicionais.

Os marcadores genéticos são ferramentas auxiliares, particularmente úteis quando um caráter possui baixa herdabilidade ou a seleção da descendência dos cruzamentos envolve grandes populações e métodos caros e trabalhosos. Muitas vezes, os genótipos são obtidos em ambiente diverso daquele em que os mesmos serão avaliados. Com essa técnica, os melhoristas poderão lidar, mais facilmente, com grandes descendências dos cruzamentos, selecionando com mais precisão os retrocruzamentos.

 

Além do melhoramento genético, a técnica será muito útil nos estudos fisiológicos envolvendo a tolerância à seca, permitindo selecionar iso-linhas para estudos comparativos envolvendo o controle genético da tolerância à seca e os processos bioquímicos e fisiológicos decorrentes.

Os avanços na biotecnologia, além da possibilidade de introdução de caracteres inter-específicos de tolerância à seca, permitirão desenvolver um mapeamento genético de todos os fatores envolvidos na tolerância à seca, criando um portfólio para o desenho de cultivares adaptadas a condições específicas, permitindo que uma determinada cultura possa não apenas conviver com o estresse hídrico, como apresentar outras características desejáveis.

No caso específico do recurso água, é importante relembrar uma máxima dos filósofos da Roma antiga: "Afirmatio unus non est negatio alterius!" (A afirmação de uma coisa não é a negação de outra.). Queremos salientar, com essa reminiscência, que o desenvolvimento de tecnologias para convivência com escassez de água não deve obnubilar o fato maior, de que a água será um dos recursos mais escassos do planeta. Como tal, a conservação, a proteção e o uso correto e regrado de recursos hídricos deve ser uma constante, em toda e qualquer atividade humana.

 

 

Tabela 1. Exemplos de mecanismos utilizados pelos vegetais para convivência com o estresse hídrico.

Cevada (Hordeum distichum L.)

Precocidade, índice de colheita, baixa transpiração, acumulação de prolina, curto período de enchimento de grãos, perfilhamento

Milho (Zea mays)

Intervalo da antese, número de espigas, número de grãos por espiga, elevado índice de partição de biomassa destinado às espigas

Milheto (Pennisetum glaucum)

Índice de colheita*

Arroz (Oryza sativa)

Elevado índice de colheita, altura de plantas intermediária, enrolamento de folhas, alto potencial hídrico das folhas, ajuste osmótico, comprimento e densidade de raízes, capacidade de penetração das raízes no solo, baixo índice de matéria seca

Sorgo (Sorghum bicolor)

Elevada capacidade de extração de água do solo, redução do número de nós do caule, baixo índice de área foliar, retardo na senescência

Trigo (Triticum aestivum)

Acúmulo de ácido abscíssico, elevado potencial hídrico das folhas, conteúdo de prolina, eficiência do processo transpiratório

Feijão (Phaseolus spp.)

Redução na queda das flores e capacidade de sustentar a formação de vagens

Grão de bico (Cicer arietinum L.)

Enraizamento profundo e de rápido desenvolvimento, alta capacidade de extração de água, precocidade, ciclo reprodutivo curto, baixo índice de área foliar

Cáupi (Vigna unguiculata L.)

Retardamento na senescência, crescimento lento para conservar umidade nos tecidos

Amendoim (Arachis hypogaea)

Índice de colheita, reduzido índice de área foliar, controle do processo transpiratório e eficiência transpiratória

Lentilha (Lens culinaris)

Florescimento precoce, ajuste osmótico, eficiência transpiratória

Tremoço (Lupinus sp.)

Maior número de sementes por vagem

Guandú (Cajanus cajan)

Ajuste osmótico, grande vigor inicial

Soja (Glycine max)

Desenvolvimento do sistema radicular, habilidade em degradar compostos de uréia, concentração de manganês nas folhas, eficiência transpiratória

Mandioca (Manihot esculenta)

Índice de crescimetno, retenção foliar, ajuste da taxa fotossintética, densidade e comprimento de raízes, condutância estomatal

Banana (Musa spp.)

Condutância estomatal, ajuste da taxa fotossintética, morfologia estomatal, ajuste do processo transpiratório

Batata (Solanum tuberosum)

Redução do consumo de água, condutância estomatal

Batata doce (Ipomea batatas)

Desenvolvimento do sistema radicular, potencial hídrico das folhas

*Relação entre a massa seca da produção (fibra e sementes) e a massa seca vegetativa.

 

Salinidade

Solos salinos são marginais para a agricultura, se considerado o arsenal tecnológico atualmente disponível. Os solos podem ser salinos por origem, devido à formação geológica, ou tornam-se salinos por manejo inadequado da irrigação.   A salinidade ocasiona fitoxicidade às culturas, com desenvolvimento deficiente das plantas, o que pode ocasionar a sua morte ou reduzir a produtividade e a qualidade das colheitas das plantas sobreviventes. Segundo dados do USDA, os EUA poderiam incrementar em 25% a sua produção agrícola, sem acréscimo de área, se todas as cultivares plantadas fossem tolerantes à salinidade.   Quando uma planta não tolerante à salinidade é cultivada em solos salinizados, ocorre uma redução significativa na capacidade de absorção de água pelas raízes. Em conseqüência, a planta é submetida a um estresse osmótico, ocasionando um distúrbio conhecido como toxicidade iônica. Em decorrência, ocorre uma desnaturação de enzimas do citoplasma, vitais para a síntese de proteínas e para a fotossíntese.

Plantas halófitas

Poucas espécies vegetais são halófitas verdadeiras, as quais são plantas com capacidade de suportar altos níveis de salinidade e de acumular significativas quantidades de sais em seus tecidos. Entre as plantas cultivadas, destacam-se algumas palmáceas e a beterraba açucareira por sua relativa tolerância à salinidade.   Provavelmente, a planta com essas características que tenha merecido maior atenção dos cientistas brasileiros é a erva-sal (Atriplex nummularia), da família das quenopodiáceas. Plantas dessa família são comuns nas regiões semi-áridas do mundo, possuindo as características de tolerar a estresses hídricos e salinos. Introduzida há cerca de 70 anos no Nordeste brasileiro, a erva-sal serve como forrageira, crescendo em condições que são adversas a outras espécies. Essa planta pode produzir até 26 ton/ha de matéria fresca, sendo mais de 80% aproveitado para alimentação animal. Do total de matéria verde, cerca de 1,2 ton/ha é composta de cinzas contendo os sais extraídos do solo.

Prospecção de genes

A prospecção de genes para tolerância à salinidade concentra-se em plantas halófitas. Cientistas chineses isolaram um gene da planta Erigeron acris, da família das Compostas, cujo nome comum em inglês é "bitter fleabane". A importância dessa descoberta pode ser mensurada se lembrarmos os mais de 40 milhões de hectares inaproveitáveis, por excesso de salinidade, existentes apenas na China.   O exemplo da China é sempre eloqüente, pela dimensão que qualquer evento adquire, em função da sua imensidão geográfica e populacional. Entretanto, solos salinos estão presentes em diversos outros países do continente asiático, espalham-se pela África, Oceania e pelas três porções do continente americano. Estimativas dão conta que cerca de um quarto das terras aráveis do mundo tem algum grau de salinidade.   Pesquisas recentes têm perseguido a obtenção de plantas cultivadas tolerantes à salinidade através de transgênese. Genes responsáveis pelo incremento dos mecanismos fisiológicos de seqüestro de sal, foram introduzidos em A. thaliana, onde estão sendo estudados e avaliados, para posterior transferência para plantas de interesse comercial. A primeira etapa do estudo foi dedicada a perscrutar e entender os mecanismos que as plantas usam para conviver com a salinidade.

Desativando os sais tóxicos

Normalmente, as plantas tolerantes acumulam o sódio nos vacúolos celulares, enquanto o cloro é excluído nas células do sistema radicular. Estudos demonstraram que plantas dos gênero Atriplex e Tamarix desenvolveram um mecanismo especializado, em que os íons de sódio são direcionados para glândulas localizadas nas folhas mais antigas, onde os mesmos são imobilizados como cristais não tóxicos. A estratégia da planta, brilhantemente desenhada pelo Cientista Mor, consiste em manter os sais tóxicos longe dos tecidos tenros do meristema, assim como mantê-los à distância das folhas jovens, que estão iniciando o processo fotossintético.   Entretanto, para isolar os íons nos vacúolos, há necessidade de uso de energia. Como o ambiente radicular é estavelmente salino, novos íons ingressam, continuamente, na seiva da planta, os quais devem ser imobilizados. Para transportá-los aos vacúolos são utilizadas proteínas denominadas "antiportos", aos quais os íons se ligam. Uma das proteínas antiporto mais extensivamente estudada é a AtNHX1. A energia para o processo é obtida através de outra proteína, a qual atua como uma "bomba de hidrogênio", descartando íons de hidrogênio (prótons) para suprir a necessidade de energia.

Avanços

Proteínas antiporto funcionam como uma "casa de câmbio", trocando íons de sódio (Na+) por prótons (H+). Já as bombas de hidrogênio, como a AVP1 (cujo nome por extenso é Fosfatase Translocadora de H+ vacuolar) são as responsáveis por ceder os prótons. Quando o processo de troca iônica precisa ser incrementado, por conta da salinidade do solo, há maior demanda de energia. Uma das soluções aventadas pelos cientistas é duplicar o gene responsável pela produção da AVP1. Essa técnica foi testada em plantas de Arabidopsis, modificadas para uma super-expressão do gene que codifica para a proteína AVP1. Resultado: a planta potencializou a sua tolerância à salinidade do solo!

 

Porém as boas notícias não param por aí. Com o aumento da troca de Hidrogênio por íons salinos, outras proteínas transportadoras são excitadas pela mudança do gradiente iônico e se valem da AVP1 para mudar o balanço iônico, fazendo com que a planta retenha mais água. Em conseqüência, as plantas de Arabidopsis tolerantes à salinidade também mostraram maior tolerância à seca!

 

 

 

 

  As boas novas continuam: após o sucesso com a planta modelo (Arabidopsis), os cientistas transferiram os genes da proteína antiporto para tomate e canola, onde observaram a mesma super-expressão da proteína. As plantas de ambas as espécies germinaram, cresceram, floresceram e produziram bons frutos em ambiente de alta salinidade. O tomate modificado apresentou alto teor de sais nas folhas, porém os frutos tinham teores normais desses sais. Na canola, embora as cinzas apresentassem um teor 6% superior de sódio, tanto a qualidade do óleo quanto a produtividade equivaleram àquelas das plantas normais, cultivados em solos não salinos.

 

O futuro

Apesar do sucesso, a questão não se esgota em definitivo nesse estágio, pois os cientistas ainda precisam resolver outros problemas, como o estresse oxidativo induzido pela seca ou pela salinidade. Estão sendo prospectados genes associados com a habilidade das células em administrar, de forma conveniente, o estresse oxidativo. Inicialmente, estão sendo estudadas as plantas de tomate e de arroz e os genes descobertos estão compondo uma biblioteca para uso futuro.   Apenas em Arabidopsis, existem mais de 250.000 linhas transgênicas, que estão sendo examinadas, garimpando genes para tolerância à salinidade. No entanto, é na biodiversidade que os geneticistas esperam encontrar um verdadeiro tesouro. Por exemplo, as linhagens de trigo W4909 e W4910 foram desenvolvidas no Laboratório de Salinidade do USDA (Riverside, Califórnia). Os cientistas introduziram no trigo genes de um parente selvagem (wheatgrass), que sobrevive em ambientes salinos. Brevemente, essas novas linhas serão testadas no campo e de seu sucesso pode surgir um novo salto tecnológico na produção de trigo.

Resistência a pragas

O desenvolvimento de cultivares resistentes a pragas é uma das primeiras aplicações práticas da biotecnologia, a ponto de cultivares Bt (aquelas que contém um gene da bactéria entomopatogênica Bacillus thuringiensis) serem um ícone entre as cultivares transgênicas.   Além de efetuar o controle das pragas a menor custo e reduzir o risco e a incerteza do agricultor, as cultivares resistentes apresentam um benefício adicional, ao reduzir os impactos negativos dos agrotóxicos sobre a saúde humana e o meio ambiente.   Existem inúmeras cultivares transgênicas resistentes a pragas como vírus, bactérias, fungos, insetos e nematóides. Um dos primeiros sucessos comerciais foi o desenvolvimento de plantas de mamão resistentes ao mosaico (ring spot vírus), inicialmente cultivado no Havaí e hoje amplamente disseminado em regiões produtoras.

Plantas Bt

As espécies de bactérias do gênero Bacillus formam um esporo bacteriano, conjuntamente com cristais protéicos (d-endotoxinas), as quais são codificadas por uma família de genes denominados cry. As toxinas produzidas por B. thuringiensis são utilizadas há mais de 70 anos para o controle biológico de insetos, através de sua pulverização sobre as culturas, visto que são tóxicas para determinados insetos pragas.   As proteínas (cristais) produzidas pelos genes cry possuem alta especificidade em relação às pragas, decorrentes de uma co-evolução de proteínas receptoras de superfície no intestino médio (mesentério) dos insetos suscetíveis. As d-endotoxinas ligam-se aos receptores protéicos, modificando sua conformação e causando vazamento de íons e dano osmótico às células. Ao final do processo, ocorre a desintegração do mesentério e a morte do inseto. Como esses receptores não estão presentes em outras espécies animais, resulta que a bactéria é inócua a inimigos naturais, ao homem e mesmo a outras pragas (insetos).   Já foram identificadas inúmeras d-endotoxinas, produzidas por diferentes cepas de Bt. Para cada toxina, foram efetuados testes para avaliar o seu espectro de ação. Hoje há disponibilidade de toxinas de Bt para controle de diversos insetos, porém preservando sua seletividade para organismos benéficos e animais superiores.

Controle biológico "transgênico"

Aproveitando o conhecimento acumulado com controle biológico, e procurando contornar os diversos problemas que impediram o uso mais difundido de B. thuringiensis, os cientistas introduziram, em diversas plantas cultivadas, os genes cry. Os níveis e localização da expressão dos genes Bt na planta transformada podem ser regulados. Dessa forma, ao "desenhar" a planta, o pesquisador define se permitirá a presença da toxina em toda a planta ou somente em algumas partes, em que teores e em que épocas de seu ciclo.

 

  Os cientistas dispõem de mecanismos, denominados "promotores dos genes", que permitem que os genes atuem (sejam expressos) somente nas partes da planta que o inseto ataca. Por exemplo, para insetos desfolhadores, a expressão do gene ocorre nas folhas. Para insetos brocas de caule, a expressão é dirigida para o caule. A vantagem dessa técnica é que a toxina não é expressa em partes da planta que serão destinadas ao consumo humano ou de animais. Por exemplo, no caso do milho, a toxina não é expressa no grão, o que é altamente desejável por questões de biossegurança e de tranqüilidade do consumidor.   Recentemente, pesquisadores do USDA desenvolveram uma cultivar transgênica para resistir aos vermes da raiz (corn rootworm), que são larvas de insetos do gênero Diabrotica. Sabe-se que, individualmente, as larvas de Diabrotica spp., que atacam raízes do milho, demandam o maior volume de agrotóxicos para controle de insetos nos EUA, sendo também responsáveis pelo maior dispêndio financeiro dos agricultores com agrotóxicos. Surge, agora, a oportunidade para o agricultor americano livrar-se de dezenas de milhões de litros de agrotóxicos e poupar centenas de milhões de dólares com a dispensa de seu uso.

Avidina

Pesquisadores do USDA introduziram no milho um gene que codifica para uma proteína (avidina), normalmente encontrada na clara do ovo de galinha, o que tornou o grão resistente a insetos que atacam grãos armazenados. A avidina demonstrou ser um poderoso inibidor de crescimento dos insetos, pois se liga à biotina (vitamina B8), o que impede o desenvolvimento dos insetos. Os cientistas, suspeitam que a avidina tem a mesma função de proteção do embrião das aves contra patógenos. Essa tecnologia poderá ser a solução para o controle de pragas de grãos armazenados, em virtude do banimento do brometo de metila, a partir de 2005.   O efeito inibidor de crescimento da avidina ocorre com a presença de 20 ppm no grão. Porém, os cientistas descobriram que, quando o milho apresenta teores acima de 100 ppm, a avidina se torna um poderoso bio-inseticida, com efeito sobre muitas pragas de plantas cultivadas. O milho transgênico, contendo avidina, já está sendo produzido nos EUA. Além de ser resistente a pragas, possui um valor adicional, pois a avidina é usada na medicina e seu custo, quando extraída de ovos, supera os US$3.000,00/grama o que, seguramente, será reduzido a uma pequena fração, extraindo-se a avidina do milho.   Embora a avidina seja um componente usual das dietas humanas há muitos séculos, estudos foram realizados para garantir a segurança de ingestão do milho transgênico. Para evitar que o gene de resistência seja expresso no pólen, os cientistas utilizaram um promotor que permite a sua expressão no caule, folhas e nos grãos porém ausente do pólen.

 

 

 

Trigo e Soja

As cultivares comerciais de trigo, que apresentam resistência à ferrugem, possuem apenas um gene responsável por essa característica, o que facilita o trabalho de adaptação do fungo, o qual é altamente mutante. Cansados de ver as suas cultivares sendo banidas do mercado rapidamente, pela quebra de resistência à ferrugem (causada pelo fungo Puccinia triticina), os pesquisadores do USDA resolveram criar uma pirâmide de genes. Para tanto investigaram ancestrais do trigo. Um deles (Aegilops tauschii) é conhecido como ‘goatgrass’, sendo um parente selvagem do trigo, encontrado no Afeganistão e na Síria; o outro parente, Triticum timopheevii, é encontrado no Irã, Iraque e na Turquia.   As pirâmides de genes de resistência à ferrugem foram montadas em plantas modelos de laboratório e, posteriormente, introduzidas no trigo. Agora os pesquisadores estão testando as novas plantas para verificar se a estratégia será suficiente para produzir cultivares resistentes à ferrugem e que possam ser utilizadas pelos agricultores durante um longo período de tempo.   O nematóide do cisto da soja foi introduzido há cerca de uma década no Brasil e se constitui, atualmente, em uma das mais importantes pragas da cultura. Pesquisadores americanos descobriram um parente da soja (Glycine tomentella) na Austrália, com elevada resistência à raça 3 do nematóide do cisto da soja. Os genes responsáveis pela resistência foram introduzidos em cultivares comerciais de soja e estão sendo avaliados na Universidade de Illinois.

Perspectivas

Os avanços tecnológicos já em uso por agricultores, assim como os avanços científicos que ainda se encontram na fase de estudos laboratoriais, permitem antever um novo ciclo na agricultura mundial, a partir do final dessa década. Enquanto prosseguirá o esforço para aumentar o potencial produtivo das plantas cultivadas, o qual sempre foi um objetivo permanente da pesquisa agrícola, da cornucópia dos pesquisadores sairão soluções sólidas para contornar as restrições mais importantes para a expressão da produtividade, decorrentes de estresses bióticos ou abióticos.   As características que serão introduzidas nas novas cultivares permitirão a convivência com estresses que têm sido as "sete pragas do Egito" da agricultura. Isto não é propriamente um fato novo, pois avanços científicos da pesquisa agrícola ocorrem diuturnamente. A inovação está no fato de que, desta feita, os maiores beneficiados serão os agricultores que vivem em áreas marginais, assoladas por secas ou estabelecidos em solos ácidos ou salinos. Talvez esse avanço tecnológico seja a maior ação de inserção social em áreas de pobreza endêmica, o que merece uma profunda reflexão sobre a facilitação do acesso desses produtores às novas tecnologias.

 

Box 1

Sol, sal e seca

 

Uma região que não tem a capacidade de produzir alimentos está condenada à pobreza, salvo raras e honrosas exceções. Sobre uma agricultura bem sucedida é possível organizar um sistema social e econômico mais complexo. Porém, na ausência de um setor primário forte, a regra é que a região seja condenada à exclusão. A agricultura é fraca, ou inexistente, quando o solo, o clima ou ambos, são adversos. Solos de pedregulho, ácidos ou salinos e climas secos, ou instáveis, impedem o estabelecimento de uma agricultura sustentável.   Embora as regiões de pobreza endêmica mais acentuada concentrem-se na África, ao sul do Saara, ou no sudeste asiático, existem enclaves de pobreza no semi-árido nordestino, com um regime pluviométrico baixo e concentrado em alguns meses do ano, além de rios temporários, inviabilizando uma agricultura sustentável. Enxotado para a marginalidade de um mercado globalizado que exige, entre outras características, garantia da regularidade de entrega, ao sertanejo resta a agricultura de subsistência. Ou seja, uma condenação eterna à pobreza, embora sem culpa formada.

Ajuda da pesquisa

A Embrapa sempre foi sensível às agruras sociais dos produtores rurais, buscando alternativas tecnológicas que permitam ao agricultor galgar degraus na busca da inclusão social. A Embrapa Semi-Árido, localizada em Petrolina (PE), cerne do sertão nordestino e encravada no polígono das secas, tem entre suas prioridades a busca de uma agricultura regional sustentável.

 

  Uma das pesquisas da Embrapa Semi-Árido combina o fornecimento de água de qualidade com o destino adequado do resíduo salino do tratamento da água. A lógica é o aproveitamento do resíduo, um material altamente poluente, como uma nova fonte de renda, através da produção de alimento para os rebanhos.

 

 

  Para entender a questão, é preciso saber que os solo do semi-árido compõem-se de rochas sedimentares do tipo cristalino. Nesse tipo de solo a permeabilidade é baixa, fazendo com que a circulação da água subterrânea seja lenta. Essa é uma das causas da salinização da água dos aqüíferos nordestinos, onde já foram constatadas concentrações salinas de 1 g/l, muito acima do máximo admitido para o consumo humano, que é de 250 mg/l.

Dessalinização

A solução que vem sendo implementada para fornecer água potável aos habitantes do semi-árido é a dessalinização, tendo sido instaladas mais de mil unidades na região. O processo consiste em forçar a água, sob pressão, a passar por uma membrana semi-permeável, a qual retém as moléculas de sal e permite a passagem da água. Essa membrana precisa ser lavada, para retirar os sais retidos na filtragem. Na saída do dessalinizador, há uma vertente de água potável e outra com a água resultante da lavagem, saturada com sal, possuindo um alto potencial de impacto no ambiente.   A água dessalinizada é adequada tanto para o consumo humano quanto para a agricultura. No entanto, ainda resta resolver o destino do resíduo salino, que torna impróprio para cultivo o solo que receba a água de lavagem. O potencial poluidor é muito alto, pois, embora raras, as chuvas que caem na região arrastarão o sal – altamente solúvel - para mananciais e fontes de água.   A solução proposta pela Embrapa é a criação de tilápias, como primeiro destino da água salobra. Os peixes reciclam parte do sal contido na água. Entretanto, como há necessidade de oxigenação constante, parcela da água do tanque deve ser substituída, diariamente. A água, proveniente dos tanques de criação de peixes, é utilizada para irrigação. Pode parecer estranho que uma água saturada com cloreto de sódio possa servir de substrato adequado a um vegetal. Em geral isso não é possível. Entretanto a recomendação dos pesquisadores é o uso da erva-sal (Atriplex nummularia), conhecida por sua alta tolerância a ambientes salinos.

 Sede e Fome Zero!

A erva-sal é originária de áreas secas da Austrália. Foi introduzida no Nordeste, onde se adaptou bem ao regime pluviométrico inconstante e de baixa precipitação (média anual inferior a 250 mm). Além de se adaptar às condições de seca, a erva-sal é uma típica representante das halófitas, plantas que toleram a salinidade do solo. Os estudos da Embrapa mostraram que a erva-sal tolera concentrações de até 36 g/l, o que equivale à salinidade das águas oceânicas. Experimentos da Embrapa mostraram que a erva-sal pode retirar até 1,2 ton/ha/ano de sal.

 

  Essas características não seriam úteis não fora a erva-sal uma planta com boas qualidades nutricionais, comparável à alfafa, considerada o paradigma entre as plantas forrageiras. A erva-sal pode produzir 6 ton/ha de matéria seca, em ciclos que podem ser inferiores a um ano. Os macro-nutrientes exigidos pela planta, como nitrogênio e fósforo, que se encontram em baixos teores nos solos nordestinos, são fornecidos pelos excrementos dos peixes.

 

 

 

  A Embrapa mantém um projeto piloto em Petrolina, na comunidade de Simpatia, onde existe um dessalinizador para atender as 56 famílias da comunidade. Esses produtores estão utilizando a tecnologia, que permite produzir 1 ton/ano de peixes, em tanques de 300 mil litros. A água dos tanques vai irrigar a plantação de erva-sal, sendo que um hectare cultivado permite suportar uma lotação de 200 caprinos, durante seis meses. Com o uso da técnica desenvolvida pela Embrapa, essa comunidade terá atendida a sua demanda de água potável e de alimento, além de dispor de uma fonte de renda, ao vender peixe e carne no mercado.

BOX 2

Menor perda de grãos
Nem sempre a estratégia que a Natureza implementou para a preservação das espécies é útil aos agricultores. Quando atingem a maturidade reprodutiva, os "frutos" das plantas podem ser deiscentes ou indeiscentes. Os agrônomos classificam como deiscentes aqueles frutos que têm uma alta propensão à abertura natural, liberando as sementes para multiplicação da espécie. Já os indeiscentes possuem uma alta resistência à abertura, o que ocorre sob condições especiais. Apesar de útil para as plantas, a deiscência é uma dor de cabeça para o agricultor, que pode perder até um terço de sua colheita devido a essa característica.
  Mas, esse problema pode estar com os dias contados. Cientistas da Universidade da Califórnia conseguiram silenciar dois genes que controlam a abertura precoce das vagens. Utilizando técnicas de biotecnologia, os genes foram silenciados em plantas de feijão, canola e soja, evitando a crônica perda antes ou durante a colheita. Os genes, denominados "shatterproof", foram introduzidos, inicialmente, em Arabidopsis thaliana, para avaliar o seu comportamento. Os pesquisadores verificaram que plantas mutantes, as quais não dispõem dos dois alelos do gene, perdem a capacidade de dispersar as sementes por meio do rompimento da síliqua (vagem da Arabidopsis).

A saúde que vem do campo

Décio Luiz Gazzoni

Eu, que já tinha muitos motivos para apreciar bons vinhos, acrescentei mais um à minha coleção, após ler um artigo na revista "Nature" (24/8/2003). Cientistas descobriram que o resveratrol, um polifenol encontrado em alguns alimentos, porém particularmente abundante na uva e no vinho, pode retardar o envelhecimento. Por enquanto, os cientistas demonstraram que essa substância aumentou a duração da vida de microrganismos (leveduras). Estudos em andamento, usando vermes e mosca de frutas mostram resultados encorajadores. Mas por que Deus não estenderia essa benesse ao Homo sapiens, especialmente se ele for sábio o suficiente para ser um apreciador de bons vinhos?

A fonte da juventude
Não é de hoje que cientistas buscam entender porque envelhecemos, pesquisando fórmulas para retardar o processo. Sabe-se que organismos expostos a uma dieta pobre em calorias reduzem, dramaticamente, a incidência de doenças ligadas ao envelhecimento, como a osteoporose, o câncer e os ataques cardíacos. Nos anos 90, cientistas demonstraram que alelos simples controlam a velocidade do envelhecimento, o que excitou a comunidade científica à busca de mecanismos e de substâncias que permitam manipular tais genes.

 

 

  O resveratrol
Não apenas o resveratrol, porém outros polifenóis similares são produzidos pelas plantas como reações a estresses. Quem se interessar pelo assunto, pode obter mais informações na matéria que escrevi para a Revista Agrinova de julho (http://www.gazzoni.pop.com.br /pagina15.htm#est). No estudo em tela, os cientistas induziram estresses leves, nos organismos em teste, para verificar o efeito do resveratrol. Concluíram que a substância pode prevenir mutações celulares, que fazem parte do processo normal de envelhecimento. São essas mutações que respondem, em grande parte, pelos acidentes cardiovasculares e pelos tumores malignos.
  A pesquisa
Os estudos foram realizados na Universidade de Harvard (EUA), por uma equipe de 12 cientistas (seis de Harvard e seis do parceiro BIOMOL Research Laboratories, da Pennsylvania), liderados pelo Dr. Konrad Howitz. De acordo com a hipótese testada, o resveratrol regula a produção de proteínas essenciais para o organismo. Em algumas situações, sinaliza para que as células assumam uma postura de defesa contra estresses, para proteger a sua integridade. A dúvida dos cientistas é como isso ocorre. Uma das hipóteses aventadas é que as proteínas reguladas pelo resveratrol teriam importante função no reparo do DNA, o qual se degrada com o envelhecimento das células. Outra hipótese é que a substância interfere positivamente no processo de morte natural das células.

Biofármacos
Outra boa notícia foi publicada na revista Science (29/8/2003), também por cientistas americanos, que produziram proteínas com propriedades terapêuticas em seres humanos, a partir de leveduras. Os cientistas mostraram-se entusiasmados com a possibilidade de curar doenças como câncer, esclerose ou hemofilia. Os estudos foram realizados em Darthmouth, na Thayer Engineering School, em parceria com a empresa de biotecnologia Glycofi.

 

  Leveduras
Não é de hoje que nós, cientistas, sabemos que as leveduras são microfábricas, podendo sintetizar diversos tipos de proteínas, especialmente enzimas. Esse é um ramo da ciência que vem avançando a passos largos, tendo sido dado um grande empurrão quando foi desenvolvido o processo de glicosilação, ou seja, foi possível unir as proteínas úteis aos organismos humanos com os açúcares produzidos pelas leveduras. Com esse processo, fica mais fácil controlar a produção e promover a extração industrial de proteínas de leveduras.
  Engenharia genética
No estudo publicado na Science, os pesquisadores modificaram o fungo (levedura) Pichia pastoris, introduzindo uma seqüência genética que permitiu à levedura codificar para proteínas humanas. Através de reações posteriores essas proteínas foram transformadas em glicoproteínas, apresentando vantagens sobre o sistema atual (que usa células da mama), como maior rapidez, maior segurança e menor custo. Além disso, as estruturas protéicas são mais puras e uniformes, oferecendo maior garantia de qualidade aos usuários dos medicamentos. Com esses dois exemplos – o resveratrol do vinho e as glicoproteínas de leveduras – verifica-se como, cada vez mais, as biofábricas e os alimentos funcionais constituem-se em segmentos da maior importância do agronegócio, pelos impactos positivos que têm na saúde humana.

 

Sanidade agropecuária e competitividade

Décio Luiz Gazzoni

O Acordo de Marraqueche, que criou a OMC, obriga os governos signatários a tomar medidas positivas e efetivas para incrementar o seu comércio com outras nações. Em particular, os governos são instados a reduzir as barreiras alfandegárias, as taxas e impostos de importação, além das barreiras técnicas e para-fiscais.   Neste contexto de desregulamentação, a exigência de uma condição sanitária elevada não apenas foi preservada, como as normas, os padrões e os procedimentos tornaram-se mais amplos, complexos e sofisticados. A conformidade aos padrões sanitários passa a ser sine qua non para a ocupação do espaço negocial com produtos de origem agrícola ou pecuária.   Não existe nenhum exemplo de um país importante no comércio internacional de agro-produtos, que não disponha de tecnologia avançada e de um eficiente sistema de Defesa Agropecuária. Este sistema se destina a proteger o ambiente produtivo de pragas exóticas, permite a convivência com as pragas já existentes, sem perda de qualidade ou produtividade, garantindo a conformidade e a inocuidade dos alimentos, além de evitar riscos à saúde pública.

Riscos

A importância de um elevado estado sanitário fica patente quando se verifica que as pragas são responsáveis por perdas médias equivalentes a 30% da produção agrícola mundial, de acordo com levantamentos conduzidos pela FAO. O prejuízo concentra-se nos países mais pobres do mundo, com um sistema de sanidade de baixa qualidade, havendo inúmeras referências de casos em que toda a produção agrícola é completamente perdida, devido a ataques de pragas. O intenso movimento comercial aumenta os riscos de disseminação de pragas agropecuárias, exigindo dos órgãos de defesa a associação a um sólido sistema de apoio científico e tecnológico, que lhe dê suporte. Por essa razão, países líderes do comércio internacional de produtos agrícolas, como é o caso dos EUA, investem, maciçamente, no dueto sanidade e tecnologia, para garantir a competitividade dos produtos agrícolas americanos no mercado e, conseqüentemente, consolidar sua liderança.

Brasil

Em relação ao nosso país, são transparentes dois desafios: faz-se mister atender a diversidade de países importadores, com as nuances culturais e legais próprias de cada nação; e precisamos obedecer aos rígidos padrões de conformidade dos países desenvolvidos, impondo-nos junto ao consumidor do Primeiro Mundo como sinônimo de segurança e qualidade, para ampliar a participação do Brasil nestes mercados, que são ricos e extremamente exigentes.   Finalmente, o Brasil parece fadado a cumprir seu destino histórico, que é a liderança dos agronegócios no plano internacional. Essa liderança impõe uma série de deveres e exigências, que são relevadas quando o país é um ator marginal no mundo dos negócios agrícolas internacionais.

Para quem pretende ser líder e, posteriormente, consolidar e perenizar esta liderança, a palavra chave para a conquista, abertura e manutenção dos mercados se chama competitividade, com a oferta de tecnologia e de ambiente sanitário que supere os demais concorrentes. Este é o mote que se impõe aos sistemas de C & T e de Defesa Agropecuária.

Sanidade e pesquisa agropecuária

As regras internacionais, das quais o Brasil é signatário, impõem que medidas sanitárias possuam um relevante fundamento científico, sendo passível de contestação por parte de outros membros da OMC, caso faleça essa condição. Um país que não disponha de um cabedal de informações científicas e tecnológicas fica duplamente prejudicado, seja pela dificuldade de emissão de regras sanitárias fundamentadas, ou por sua incapacidade de análise de medidas emitidas por outros países, que possam prejudicar as suas exportações.   Dessa constatação derivam dois corolários. O primeiro deles aponta para a necessidade de ampliar e preservar os quadros dos órgãos de defesa agropecuária, investindo fortemente no seu constante aprimoramento intelectual. A sanidade agropecuária é uma área fortemente especializada e não admite nem alta rotatividade de seus quadros, menos ainda a depreciação do capital humano pela dificuldade de acesso à informação e treinamento. O segundo corolário é a demonstração da necessidade de um estreitamento cada vez maior dos órgãos sanitários com as universidades e os institutos de pesquisa, preferencialmente conduzindo programas conjuntos.

Prejuízos

As crises causadas pelas epidemias de BSE (vaca louca) e de febre aftosa, no Continente Europeu, dão uma idéia clara da importância da sanidade agropecuária para a formação da riqueza e para o intercâmbio comercial. Apenas na Inglaterra, a epidemia de febre aftosa determinou o extermínio de mais de dois milhões de animais, com enormes prejuízos econômicos, além de impactos ambientais como contaminação de águas subterrâneas, e de impactos sociais, como a falência de negócios, que chegaram ao extremo de provocar um surto de suicídios entre os pecuaristas, de acordo com a imprensa internacional.   O prejuízo causado pela febre aftosa para o ano de 2001 foi estimado em nove bilhões de libras esterlinas, o equivalente a 1,1% do PIB britânico. Ambas epidemias foram causadas pelo descompasso no ritmo de investimentos na modernização e na geração de novas técnicas de controle sanitário em, praticamente, todos os países da União Européia, o que ocasionou um paradoxal fechamento do mercado interno e externo para seus produtos.

Barreiras comerciais

A tentativa de utilização de medidas sanitárias como barreira comercial está sempre presente, quer de forma acintosa, como ocorreu em passado recente, envolvendo a proibição de importação de carne brasileira por suspeita de risco de contaminação por BSE, ou através de fixação de normas e padrões que dificultam o acesso de exportadores de um país ao mercado de outra nação.   Essa ameaça exige que o país disponha de uma rede de Ciência e Tecnologia de apoio à Defesa Agropecuária, para permitir pronta resposta e evitar barreiras comerciais aos nossos produtos. A mesma análise aplica-se ao mercado interno, considerando-se que um dos postulados do Acordo de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias da OMC (SPS) trata do princípio da não discriminação. Por esse dispositivo, não se pode exigir de um parceiro comercial padrões mais rígidos que aqueles utilizados no mercado interno.   Isso posto, o país que pretenda dominar o próprio mercado necessita produzir com alto padrão de qualidade e sanidade, para não ser excluído de um mercado outrora cativo. Esse desiderato somente será atingido com órgãos sanitários e de C&T de alta qualificação, operando de forma integrada e harmoniosa.

Novas pragas

Existem diversas pragas exóticas, que ainda não ingressaram no país, e que podem ser limitantes à produção brasileira. Por exemplo, a produção de 57 milhões de toneladas de soja, previstas para o próximo ano, equivalendo a um valor bruto de produção dentro da porteira superior a R$33 bilhões, está ameaçado, com o ingresso no País da ferrugem da soja, além da possibilidade da entrada de outras pragas, como o pulgão da soja.  

Com o aumento do intercâmbio comercial, o risco de ingresso de novas pragas é muito alto. Portanto, o Brasil precisa estar preparado para evitar que o ingresso ocorra e, caso venha a suceder, é vital que o Brasil esteja tecnologicamente equipado para continuar produzindo com o mesmo custo, mantendo a mesma produtividade e a mesma qualidade, sem prejuízo de sua competitividade. A associação entre órgãos de defesa agropecuária e instituições de C & T é crucial para a melhoria do status sanitário. Recentemente, foram introduzidas no Brasil diversas pragas agrícolas, com potencial de danos muito elevado.

  À guisa de exemplo, podemos referir o cancro da haste e o nematóide do cisto da soja, com potencial de, praticamente, eliminar a competitividade da cultura no País, e que foram eficientemente manejadas através de tecnologias que, estrategicamente, haviam sido desenvolvidas antes que os problemas se dispersassem em nosso ambiente produtivo. Tanto nesse caso, como em outras situações, a atuação conjunta dos órgãos sanitários e das instituições de pesquisa foi fundamental para garantir a competitividade do agronegócio brasileiro.

Impactos econômicos

Caso a Embrapa não houvesse atuado preventivamente, desenvolvendo tecnologia para que o produtor de soja pudesse conviver com os novos problemas, seguramente o Brasil não estaria produzindo o volume de soja atual. O recente ingresso da sigatoka negra da bananeira está apresentando impacto reduzido em função de cultivares resistentes, desenvolvidas pela Embrapa, que permitem a rápida substituição da base genética. A atuação conjunta da Embrapa, do DDIV/SDA/MAPA e dos órgãos estaduais de sanidade agropecuária está permitindo que uma doença como a sigatoka, com potencial de destruir a bananicultura brasileira, seja controlada com relativo sucesso, garantindo os negócios privados, o emprego e a renda do brasileiro.

 

  A introdução da ferrugem da soja já vem causando enormes perdas e um intenso esforço investigativo precisa ser imediatamente implementado, para minimizar os potenciais impactos negativos na sojicultura e no ambiente. Novamente, será imprescindível uma atuação conjunta para assegurar a competitividade brasileira para garantir, entre outros objetivos, a possibilidade cada vez mais provável de o Brasil tornar-se o maior produtor mundial de soja, ainda nesta década.

Impactos sociais
 

 vassoura de bruxa, que dizimou os cacaueiros do Brasil, progrediu porque o País não estava tecnologicamente preparado para conviver com a praga. Nos anos 70 ocorreu o ingresso do bicudo do algodoeiro no Brasil, e a falta de tecnologia adequada para seu controle promoveu a erradicação do algodão dos Estados do Sul e do Nordeste, gerando um surto de pobreza entre os pequenos agricultores. O maior impacto ocorreu no Nordeste, onde seis milhões de pequenos agricultores perderam sua principal fonte de renda para aquisição de produtos, bens e insumos.   Uma das motivações do recrudescimento das ações reivindicatórias do Movimento dos Agricultores sem Terra (MST) foi o declínio de culturas intensivas em mão de obra, entre elas o cacau e o algodão, não tendo sido encontrada recolocação para a população deslocada pelo ingresso das pragas. Este é um bom exemplo de como problemas sanitários podem ter sérios impactos sociais, prejudicando políticas públicas prioritárias.

Rede de pesquisa

A necessidade de organizar uma rede de apoio científico e tecnológico à Defesa Agropecuária é premente. Além das ações usuais de C & T, esta rede deve ser composta de um segmento focado na detecção de problemas sanitários, presentes ou quarentenários, e de um alerta epidemiológico que permita uma ação rápida dos mecanismos de Defesa, em caso de emergência.

Como a solução de qualquer problema sanitário embute um forte componente tecnológico, será necessário que o sistema de pesquisa esteja aparelhado para internalizar a demanda e oferecer uma resposta efetiva em curto espaço de tempo, em especial valendo-se de estudos estratégicos desenvolvidos antes que o problema ingresse no país.

 

O país que não investir, agressivamente, na geração de informações e tecnologias em sanidade agropecuária, para produzir em um ambiente saneado, com competitividade e sustentabilidade, estará se auto-condenando à exclusão do mercado globalizado. Caso esse país tenha um perfil marcadamente agrícola, como o Brasil, estará abrindo mão de sua principal perspectiva de progresso e desenvolvimento econômico e social, com profundos impactos na área ambiental, e com deterioração progressiva nas contas cambiais, que acabam por tolher sua soberania e as suas perspectivas futuras.

Assim, deixo como mote final, para reflexão dos leitores: o investimento em sanidade agropecuária é, acima de tudo, o investimento que a sociedade faz para obter desenvolvimento, progresso, emprego e renda.

Sol, sal e seca

Décio Luiz Gazzoni

 

Uma região que não tem a capacidade de produzir alimentos está condenada à pobreza. Sobre uma agricultura bem sucedida é possível organizar um sistema social e econômico mais complexo. Porém, na ausência de um setor primário forte, a regra é que a região seja condenada à exclusão. A agricultura é fraca ou inexistente quando o solo, o clima ou ambos são adversos. Embora as regiões de pobreza endêmica mais acentuada concentrem-se na África e no sudeste asiático, existem enclaves de pobreza também no semi-árido nordestino. Enxotado para a marginalidade de um mercado globalizado que exige regularidade de produção, ao sertanejo restaria a agricultura de subsistência.   Ajuda da pesquisa
A Embrapa sempre foi sensível às agruras sociais dos produtores rurais, buscando alternativas tecnológicas que permitam ao agricultor galgar degraus na busca da inclusão social. A Embrapa Semi-Árido (Petrolina-PE), localizada no polígono das secas, tem entre suas prioridades a busca de uma agricultura regional sustentável. Uma das pesquisas combina o fornecimento de água de qualidade com o destino adequado do resíduo salino do tratamento da água. A lógica é o aproveitamento do resíduo, um material altamente poluente, para produzir alimento animal. Para entender a questão, é preciso saber que os solos do semi-árido compõem-se de rochas sedimentares do tipo cristalino, de baixa permeabilidade, em que a água subterrânea circula lentamente. Essa é uma das causas da salinização dos aqüíferos nordestinos, onde foram constatadas concentrações salinas de 1 g/l, muito acima do máximo admitido para o consumo humano (250 mg/l).
 

Dessalinização
A solução para obter água potável é a dessalinização, tendo sido instaladas mais de mil unidades na região. O processo consiste em forçar a água, sob pressão, a passar por uma membrana semipermeável, a qual retém as moléculas de sal e permite a passagem da água. Essa membrana precisa ser lavada para retirar os sais retidos na filtragem. Na saída do dessalinizador, há uma vertente de água potável e outra com a água resultante da lavagem, saturada com sal, possuindo um alto potencial de impacto no ambiente. A água dessalinizada torna-se potável, no entanto é preciso dar um uso ao resíduo salino, que torna impróprio para cultivo o solo que receba a água da lavagem. O potencial poluidor é muito alto, pois, embora raras, as chuvas que caem na região arrastarão o sal para mananciais e fontes de água.
  Reciclagem
A solução proposta pela Embrapa é a criação de tilápias, pois os peixes reciclam parte do sal contido na água. Entretanto, como há necessidade de oxigenação constante, parcela da água do tanque deve ser substituída diariamente. A água proveniente dos tanques de criação de peixes é utilizada para irrigação. Pode parecer estranho que uma água saturada com cloreto de sódio possa servir de substrato adequado a um vegetal. Entretanto, a recomendação dos pesquisadores é o uso da erva-sal (Atriplex nummularia), conhecida por sua alta tolerância a ambientes salinos.
 

Piloto
A Embrapa mantém um projeto piloto em Petrolina, onde um dessalinizador atende às 56 famílias da comunidade. A comunidade produz 1 ton/ano de peixes, em tanques de 300 mil litros. A água dos tanques vai irrigar a plantação de erva-sal, sendo que um hectare cultivado suporta 200 caprinos, durante seis meses. Com o uso da técnica desenvolvida pela Embrapa, essa comunidade terá atendida a sua demanda de água potável e de alimento, além de dispor de uma fonte extra de renda.
  Sede e Fome Zero!
A erva-sal é originária de áreas secas da Austrália. Foi introduzida no Nordeste, onde se adaptou bem ao regime pluviométrico inconstante e de baixa precipitação (média anual inferior a 250 mm). Além da seca, a erva-sal tolera a salinidade do solo, por ser uma planta halófita. Os estudos da Embrapa mostraram que a erva-sal tolera concentrações de até 36 g/l, o que equivale à salinidade das águas oceânicas. Experimentos da Embrapa mostraram que a erva-sal pode retirar até 1,2 ton/ha/ano de sal da água. Essas características não seriam úteis, não fora a erva-sal uma planta com boas qualidades nutricionais, comparável à alfafa. A erva-sal pode produzir 6 ton/ha de matéria seca, em ciclos que podem ser inferiores a um ano. Os macronutrientes exigidos pela planta, como nitrogênio e fósforo, que se encontram em baixos teores nos solos nordestinos, são fornecidos pelos excrementos dos peixes.

Biopirataria I

Décio Luiz Gazzoni

Entre os ingredientes ativos mais importantes para a farmacologia, 70% derivam da biodiversidade ou foram inspirados em substâncias naturais. O que nos faz refletir nas centenas de bilhões de dólares de vendas anuais de medicamentos, uma boa medida do patrimônio contido na biodiversidade. Se lembrarmos que 25% da biodiversidade mundial localiza-se no Brasil, percebe-se a riqueza entesourada nas matas, nos rios e nos pântanos brasileiros.   Riqueza potencial
O IPEA estima o valor da biodiversidade brasileira em US$ 2 trilhões (quatro PIBs nacionais). Entretanto, de que vale esse potencial se não pudermos transformá-lo em benefícios à Humanidade, com retornos aos detentores da biodiversidade? Em especial, como vamos remunerar o conhecimento acumulado ao longo de milênios nas comunidades da floresta e nas tribos indígenas? Como vamos proteger a propriedade intelectual do pajé cujo cromatógrafo é um caldeirão e que, mesmo assim, desenvolveu tecnologia que hoje é expropriada, sem escrúpulos, por multinacionais?
 

Conhecimento pirateado
Descrever todos os casos já registrados de biopirataria seria enfadonho, portanto restringir-me-ei a alguns exemplos. Lembro o quanto povoava a minha fantasia infantil um veneno poderoso, que os índios colocavam na ponta de suas flechas e que equivalia à sua bomba atômica, tamanho seu poderio e o medo que inspirava nos inimigos. O veneno se chama curare e é até hoje utilizado pelos índios. Não apenas como veneno, porém como componente de sua farmacopéia. Ocorre que uma multinacional andou bisbilhotando nas receitas dos pajés e o curare foi surrupiado de nossa biodiversidade e de nosso conhecimento milenar, para ser patenteado lá fora.
  Venenos e alucinógenos
Hoje o curare, travestido de relaxante muscular, engorda o lucro da multinacional. E o que dizer da erva do Santo Daime, planta com compostos alucinógenos, que atraiu artistas e curiosos para a seita do santo de mesmo nome? Os índios chamam a planta de "aiausca" e já a utilizavam há séculos, quando a mesma foi patenteada por outra empresa estrangeira. Hoje, os medicamentos dela derivados são comercializados ao abrigo das leis de patentes dos países ricos, sem que caiba qualquer compensação aos verdadeiros descobridores dos seus poderes medicamentosos.
 

Falha legal
As leis de patentes são muito parecidas entre si, independentemente dos países que as exaram, destinando-se à proteção da inovação gerada nos laboratórios industriais. Conhecimentos milenares, se não foram devidamente registrados, preferencialmente em revistas científicas de larga circulação, não são reconhecidos. A lei americana é explícita ao não reconhecer o conhecimento transmitido através de gerações pela linguagem oral. Isso impede que patentes sejam contestadas com base na prerrogativa de detentores de conhecimento não registrado. Recentemente, a Universidade de Wisconsin solicitou patente para uma substância denominada tumérica, extraída de raízes de plantas, utilizada secularmente como cicatrizante, em toda a Índia. A contestação hindu não teve acolhida pelo Escritório de Patentes dos EUA, que exigiu registro escrito de seu uso como medicamento. O que salvou a Índia foi um de seus livros sagrados (Vedas Upanishads), onde aparecia uma recomendação da tumérica como cicatrizante, escrita na época do descobrimento do Brasil!
  Viés legal
Quem investe em inovações tecnológicas sempre é muito cioso da proteção de seus direitos de patentes e de propriedade intelectual. O que faz todo o sentido, sob a óptica da rationale econômica. Raciocinando pelo absurdo, caso não houvesse qualquer tipo de prerrogativa diferenciada ou de direitos do obtentor de uma inovação, não haveria um real estímulo à inovação. Dessa forma, ficaria prejudicada a medicina, a veterinária, a agricultura, a engenharia, a música e qualquer outra forma de manifestação de criatividade, onde fosse imperioso o investimento de risco em inovação. Por outro lado, não se podem imaginar extremos como a negação do conhecimento milenar ou do domínio sobre a biodiversidade, sob pena de utilizarmos uma escala de dois pesos e duas medidas, beneficiando os detentores de conhecimento que possuem "lobbies" poderosos e os melhores advogados, em detrimento das demais formas de descoberta, domínio, uso e apropriação do conhecimento.

Biopirataria II

Décio Luiz Gazzoni

Comentei, na semana passada, que as comunidades interioranas e, especialmente, as indígenas, são as maiores prejudicadas pela biopirataria, que grassa em nosso País. Algumas vozes se levantam na sociedade, no Congresso Nacional e em outros órgãos do Governo, para alertar as comunidades indígenas sobre essa forma de expropriação, a fim de que elas possam defender-se, adequadamente, de acordo com as leis do homem branco.   Embrapa
A Embrapa vem trabalhando, há muitos anos, com as comunidades indígenas, para auxiliá-las na catalogação de seus conhecimentos, técnicas agrícolas e uso da biodiversidade. Recentemente, o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) promoveu um curso sobre a legislação afeta a patentes e propriedade intelectual, para advogados ligados às comunidades indígenas. Participaram do curso 13 índios, que voltaram às suas tribos com detalhes sobre biodiversidade, patentes, registros, direitos autorais, etc. Em 2001, 25 comunidades indígenas participaram de um evento em São Luiz (MA), onde foi redigida a carta de São Luiz, que propugna igualdade de tratamento entre inovações modernas e conhecimento secular, mesmo que signifique a adoção de regimes distintos, desde que compatíveis. Reivindicam o apoio governamental, em termos de proteção legislativa e de aporte de ciência e tradicionais possam ser compartilhados, sem que seja necessário expropriar o conhecimento de seus legítimos detentores.
 

Estamento legal
Além das legislações próprias de cada país, existem acordos e instituições multilaterais que se dedicam à proteção da inovação e da propriedade intelectual. O TRIPS (Trade Related Intellectual Property Rights) é um dos acordos fundamentais da Organização Mundial do Comércio e serve de parâmetro para as trocas comerciais entre os países. A CDB (Convenção de Diversidade Biológica) foi assinada durante a ECO 92, no Rio de Janeiro, e dispõe sobre o acesso à biodiversidade. A OMPI (Organização Mundial de Propriedade Intelectual) e a UPOV (União dos Obtentores Vegetais) são exemplos de instituições atuantes no âmbito internacional. Porém, como sucede em outras facetas do comércio internacional, os "lobbies" que atuam sobre elas são poderosos e buscam defender as grandes corporações que investem na inovação tecnológica.
  Exemplo
O Brasil tem procurado alterar alguns dispositivos que regem a propriedade intelectual, em escala internacional, buscando inserir a proteção à biodiversidade e ao conhecimento tradicional. Incentiva a criação de um banco de dados de conhecimentos tradicionais e de uso da biodiversidade, para que possa se constituir em um registro da anterioridade de uso de determinados princípios farmacológicos, permitintecnologia, que permita que os conhecimentos do aos detentores de seu conhecimento melhor posicionamento frente às leis de patentes. Coerentemente, a Medida Provisória 2186, que regula o acesso à biodiversidade brasileira, reconhece o direito das tribos indígenas e dos demais detentores de conhecimento tradicional. Prevê a repartição de benefícios, caso alguma substância de uso tradicional venha a ser comercializada e reconhece o direito das comunidades decidirem sobre o acesso aos seus recursos genéticos.
 

Contra-medidas
Não será uma tarefa fácil, para qualquer país que detenha parcela significativa da biodiversidade, protegê-la da voracidade de empresas movidas a muito lucro, pouca ética e baixa responsabilidade social. Acreditamos que a batalha deva se desenrolar em diversas frentes. Em primeiro lugar, é necessária a união de esforços de todos os países interessados em proteger a biodiversidade, formando uma frente com objetivos comuns para tentar a inserção conceitual nos mecanismos internacionais de proteção patentária. Em segundo lugar, será necessária uma ação forte de catalogação do conhecimento tradicional, do seu registro adequado e de formas de seu reconhecimento vis a vis às inovações emanadas dos laboratórios.
  E, finalmente, a batalha será definitivamente vencida quando o Brasil dispuser de condições de investir em Pesquisa e Desenvolvimento, associando-se aos detentores do conhecimento da biodiversidade, para que a Humanidade seja beneficiada com a democratização ao seu acesso e o conhecimento tradicional seja respeitado, reconhecido e remunerado. Em qualquer dessas iniciativas, a Embrapa apresenta-se como um parceiro para que os objetivos sejam atingidos.

RIP, Lee Kying Hae!

Ele era proprietário de um sítio de 16 ha, na Coréia do Sul. Impossibilitado de competir com a agricultura fortemente subsidiada dos países ricos, perdeu seu sítio para os banqueiros. Sem esperanças de resolver seu próprio problema, Lee Kying Hae suicidou-se, no decurso da reunião da OMC em Cancun, na esperança de chamar a atenção do mundo para o problema dos agricultores dos países pobres e emergentes.   Prepotência
Durante a reunião da OMC, bem como durante a abertura da 58ª. Assembléia Geral da ONU, encontrava-me na Europa. Foi interessante poder observar a visão dos fatos do outro lado da cerca. Para a mídia do Primeiro Mundo, o Presidente do Brasil não esteve em Nova Iorque, nem discursou na abertura dos debates da ONU. Seu nome, seu discurso ou suas propostas não foram mencionadas na mídia. O mestre Clóvis Rossi registrou o mesmo fato (FSP, 24/9), pesquisando os sites dos órgãos de comunicação do Primeiro Mundo. O Brasil merece registro apenas quando apóia propostas emanadas de países ricos - e quando lhes interessa essa menção.
 

Subsídios agrícolas
Para saber das posições brasileiras e do G-22, tive que recorrer ao site do JL e de outros órgãos da imprensa brasileira. Na mídia francesa, inglesa, alemã ou americana, o Brasil raramente era mencionado, pois o tema central era a defesa do protecionismo agrícola. Fiquei curioso em saber como Mon. Bové, a estrela anti-globalização do Fórum Social Mundial se comportaria. Comportou-se como o esperado: quietinho no seu canto, que ele não é trouxa de defender o fim dos subsídios à agricultura européia, o que tiraria a sua boquinha, o seu conforto e o seu meio de vida fácil, seguro e garantido.
  Acordo
Coerente com seu passado, o Ministro Roberto Rodrigues, no retorno de Cancun, decretou com sensatez: "Melhor acordo nenhum que um mau acordo!". Certo o Ministro, pois já concedemos demais em outras ocasiões para nada receber em retorno. Melhor arregaçar as mangas e vencer usando as armas das quais dispomos. Porque, na visão enviesada de um dos editoriais do Herald Tribune, o livre comércio não ajudará os agricultores do terceiro mundo (The Cancun delusion, Sep 13-14/2003). Ora, mas essa não é a antítese do que nos venderam a respeito do Livre Comércio? O New York Times vai mais longe e duvida que o G-22 se mantenha firme e unido ao longo das "negociações". Desafia o Brasil, a África do Sul, a Índia e a China a abrirem seus mercados aos países mais pobres, como a Europa o fez (NYT, Sep 12). Fez? E não contaram a ninguém?
 

Porque subsidiar na Europa?
Após inúmeras visitas, leituras e discussões, com o espírito completamente aberto, entendo as razões pelas quais a Europa protege tão acirradamente sua agricultura. Continente conflagrado por guerras e epidemias, a fome percola a História do Continente Europeu. Portanto, seus líderes decidiram que perseguirão a segurança alimentar, não interessa a que preço, nem o que isso signifique em choros e lamentações em outros países. Dispondo de pouca área agricultável para o tamanho de sua população e com janelas climáticas estreitas, a Europa sequer roça as vantagens de área e as edafoclimáticas do Brasil. Uma competição aberta entre europeus e brasileiros somente seria possível para produtos de altíssimo valor intrínseco ou agregado (queijos e vinhos finos, flores e ornamentais de primeira linha). No restante da agropecuária, o Brasil é imbatível, inclusive pelos ganhos tecnológicos propiciados pela Embrapa e outras instituições de pesquisa – embora a Embrapa viva hoje um dos maiores arrochos salariais e orçamentários de sua história, uma dura penalidade a quem ajudou a viabilizar a competitividade do agronegócio brasileiro.
  O subsídio americano
Historicamente, os EUA justificam seus subsídios como contraposição ao protecionismo europeu. Hoje, a questão é mais séria porque, sem subsídios, os EUA não conseguem competir diretamente com o Brasil e com outros países agrícolas, que possuem diversas vantagens comparativas. Sem protecionismo, em menos de um lustro, a periferia das grandes cidades americanas e européias seria inundada por ex-agricultores, incapazes de sobreviver em um sistema de livre comércio. Essa é a razão pela qual o Primeiro Mundo não abrirá mão de seu protecionismo tão cedo. Pela mesma razão, nós, habitantes do Terceiro Mundo, pagaremos o preço desse protecionismo, forçados a abrir mão da perspectiva de renda, empregos e do desenvolvimento que o livre comércio agrícola nos propiciaria.

Rastreabilidade

Décio Luiz Gazzoni

A palavra rastreabilidade não é encontrada no "Aurélio" ou no "Houaiss", como deles não constam tantas outras, recentemente incorporadas ao nosso linguajar. A evolução cultural e tecnológica assumiu um ritmo e um cunho globalizante que os usos, costumes e a comunicação coloquial acompanham mas os dicionários não.   No começo, se falava em "trace back", por falta de correspondente em português, de onde decorreu o neologismo "traçabilidade", como se usava "agribusiness" até ser plasmado o termo agronegócio. Rastreabilidade é a catalogação de cada processo ou insumo da cadeia produtiva, permitindo identificar eventuais não conformidades, detectadas no uso final do produto ou em qualquer ponto da cadeia produtiva. Mas o importante mesmo é saber que, sem rastreabilidade, o espaço mercadológico de um produto agrícola fica mais estreito.

 

Tecnologia marca Embrapa
Imagine a cena: no balcão de carnes do supermercado você anota o código de uma picanha, vai até o terminal de computador, e lê o "diário" do boi na Internet, para decidir sobre a compra. Fantasia? Não, a Embrapa está transmutando essa ficção em realidade. Antigamente, com a boiada no brete, um peão vacinava e cantava o número do animal. Outro peão, papelório na mão, procurava a ficha e anotava, rapidamente, porque o vacinador já cantava outro número. Na saída do brete, um terceiro peão separava os animais por lotes. Na confusão, e no stress da pressão para manter o ritmo, ocorriam os erros. Uma tecnologia desenvolvida pela Embrapa vai, praticamente, eliminar os erros e facilitar os controles de pesagem, vacinação, banhos e outros procedimentos sanitários, nutricionais e de manejo do gado. O segredo está no implante de um chip no bezerro, que o acompanhará até o abate no frigorífico, onde será resgatado. Essas informações estarão disponíveis para todos os usos técnicos e mercadológicos compulsórios ou imagináveis – até o "diário" do boi na Internet!
  Teclado do peão
O que vai ao campo não é o computador mas uma interface, que está sendo alcunhada de "teclado do peão". O teclado dispõe de uma memória, para registro dos dados, e de um sistema para comunicar-se com o chip, através de um sensor. Assim, são armazenados no chip, implantado no animal, as informações sobre sua nutrição, saúde e reprodução. Esse banco de dados fornece parâmetros técnicos ou econômicos para melhorar o manejo do gado ou a gestão da propriedade. O nome teclado do peão vem de sua portabilidade e da facilidade de uso, projetado que foi para resistir às duras condições da lide em campo aberto.

 

Operação
O chip dispõe de uma bateria que lhe permite permanecer ativo durante o período de registros, até o abate do animal. O teclado possui um sensor que identifica automaticamente o animal. Mesmo que o animal não tenha o chip, é possível registrar os números (brincos) através do teclado, muito mais simples que procurar registros pela papelada. Terminada a faina de campo, o teclado é levado ao escritório da fazenda, onde cópia dos dados enviados a cada chip é transferida da para o computador. Um software lê e armazena os dados, os quais podem ser utilizados para qualquer finalidade técnica ou administrativa. Embora o acesso à Internet ainda seja uma utopia em nossos campos, a chegada de celulares com acesso direto a satélites e a conexão aberta 24h com a Internet já está no pipeline, o que abre infinitas possibilidades. A fazenda Pecuária Seletiva Beka, (Santo Antônio da Platina - PR), foi a primeira propriedade particular a ter os animais de rebanho monitorados com o chip da Embrapa.
  Parceria
A Embrapa está negociando uma parceria com uma empresa norte-americana para transferência onerosa da tecnologia brasileira para uso nos EUA. O Governo do Uruguai também está interessado em levar essa tecnologia para as plagas do sul, a fim de monitorar seu rebanho de 2,8 milhões de cabeças. O sistema da Embrapa tem um custo de implantação estimado em R$5.000,00. O preço de cada chip oscila entre R$6,00 e R$9,00, dependendo da quantidade adquirida. Com o chip, o couro não é prejudicado pelas marcas de ferro quente e a tecnologia em si evita fraudes. Para extrair o chip, será necessário abrir o estômago do bovino adulto. Nos bezerros, cujo transponder é inserido na prega umbilical, qualquer forma de fraude causaria uma cicatriz, o que evidenciaria o possível delito. Os interessados na tecnologia podem contactar a Embrapa Gado de Corte, pelo telefone +67 368-2000 ou pelo e-mail é sac@cnpgc.embrapa.br.

A soja RR e seus novos dilemas

Décio Luiz Gazzoni

O Brasil era o único grande produtor de soja do mundo que, oficialmente, ainda não cultivava soja RR. A tecnologia foi parcialmente liberada pela MP 131, embora ela esteja sendo contestada judicialmente, através de três ADINs. A edição da MP permite inferir que não há restrição mercadológica importante envolvendo a soja RR. Como corolário é reconhecido, também, não haver prêmio para a soja convencional, como já havia demonstrado o analista de mercado Flavio França Jr., da Agência Safras e Mercados, através da análise da série histórica das cotações da soja, em recente palestra na Embrapa Soja.  

Caso houvesse alguma perspectiva de perda financeira não haveria pressão dos agricultores pela liberação da soja RR. Sua inspiração foram los hermanos argentinos, que duplicaram a venda de soja à Europa, coincidindo com o plantio de soja RR, que representa 99% da lavoura argentina.

 

Saúde e ambiente
Em última análise, quem determina o tamanho do mercado, os prêmios e os descontos da cotação da soja é o consumidor final, permitindo inferir que a maior parcela da opinião pública não vislumbra riscos à saúde, assim como a cidadania não entrevê a perspectiva de danos ao ambiente. Em tempos de culto à saúde e respeito à ecologia, se dúvidas persistissem, a opinião pública mundial enxotaria do mercado os alimentos derivados de OGMs, incluindo a soja RR. Intuo que o consumidor foi tranqüilizado pelo "efeito de massa", representado por 240 milhões de toneladas de soja transgênica, consumidas nos últimos anos, sem que aflorasse qualquer suspeita de efeito alergênico ou outro distúrbio de saúde. Lembrando que a soja transgênica, produzida nos EUA ou na Argentina, foi consumida nos países do Primeiro Mundo e seus cidadãos foram as cobaias, sujeitos a eventuais riscos à saúde.
  Vantagens e desvantagens
Relativamente às questões agronômicas e de mercado propala-se, de uma parte, ganhos financeiros com o cultivo de soja RR (por menor uso herbicidas), ao tempo em que os agrupamentos contrários insistem que a mesma apresenta menor produtividade. Os institutos de pesquisa brasileiros nunca puderam comprovar, nas nossas condições, qualquer das afirmativas. Agora, essa dúvida poderá ser elucidada. Pessoalmente, entendo que a maior vantagem de seu cultivo repousa na simplificação do controle de plantas daninhas, menos dependente de tecnicalidades e de condicionamentos de solo, de clima e do dimensionamento de parque de máquinas.

 

 

Primeiro dilema
Removidas as constrições legais e reduzidas as angústias pertinentes à saúde e ao ambiente, entendo que o dilema inicial será o pagamento da taxa tecnológica ao detentor da patente do gene RR. O Brasil será a arena para o primeiro teste real, em escala mundial. Na Argentina não há cobrança e, nos EUA, qualquer valor cobrado é fictício, pois o subsídio agrícola se encarrega de anular o impacto sobre o custo de produção. Comenta-se no mercado, sem confirmação do detentor, que esse valor seria superior a US$17,00/ha. Entendo ser o valor deveras elevado, significando uma apropriação integral do eventual ganho financeiro com o menor uso de herbicidas. Em decorrência, antevejo uma ameaça ao sistema de produção e comercialização de sementes brasileiro, fortemente dependente da soja. Para evitar o pagamento da taxa tecnológica, incidente sobre a semente, o produtor utilizar-se-á da permissão legal de produzir a sua própria semente. Por esse raciocínio pode-se especular, também, que fica entreaberta a brecha para comercializar, ilegalmente, a semente assim produzida, sonegando impostos e roialties.
 

Segundo dilema
A pressão de seleção, que será exercida sobre as plantas invasoras que vicejam nos campos de soja, será de tal ordem que, em pouco tempo, estarão criadas as condições para o desenvolvimento de ervas daninhas resistentes ao glifosato, em grande escala. Esse fenômeno, absolutamente indesejável, não é novidade nem é inevitável. Plantas daninhas resistentes ao glifosato já foram identificadas nos EUA e na Argentina. Os agricultores deverão atentar para as regras de manejo de plantas daninhas, alternando formas de controle, inclusive – se for o caso – variando a cultivar de soja transgênica, quando outras opções, além da RR, estiverem disponíveis. O agricultor relapso, que relevar esse aspecto, corre o sério risco de enormes prejuízos financeiros e muitas dificuldades para conduzir sua lavoura. Mais do que nunca, vale a velha máxima: consulte o seu agrônomo!

 

Seqüestrando o carbono

Décio Luiz Gazzoni

Embora estudos científicos tenham demonstrado que a maior fonte de poluição da atmosfera são as decadentes indústrias americanas e não as queimadas agrícolas, não se pode menosprezar o seu potencial de sujar o ar. Porém o melhor dos mundos surge quando, além de não queimar a vegetação, é possível enxugar uma parte da poluição jogada na atmosfera pelas retrógradas indústrias americanas. Tão poluentes e retrógradas que Mr. Bush recusou-se a assinar o protocolo de Kyoto (aquele que propugna uma redução progressiva do emporcalhamento do ar que respiramos), como evitou comparecer à Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável, tamanho é o custo que a modernização tecnológica impõe à poderosa economia americana. A Rússia, segundo maior poluidor mundial, parece querer trilhar o mesmo caminho.   Sem fogo
A idéia é simples, mas representa um avanço na proteção do ambiente. Tradicionalmente, o caboclo da Região Norte do País costuma atear fogo na capoeira, a vegetação secundária que toma conta da área, após o desmatamento ou durante o pousio. Pesquisadores da Embrapa, sediados em Belém (PA), associados com cientistas das Universidades de Göttingen e Bonn conduziram estudos para desenvolver alternativas viáveis às queimadas. A primeira idéia foi substituir a queimada por um implemento triturador, acoplado a um trator, que pica a vegetação, devolvendo-a à superfície do solo. A trituradeira desenvolvida pelos pesquisadores brasileiros e alemães é denominada Tritucap. Como a máquina é usada durante pouco tempo em cada propriedade, não existe a necessidade de cada agricultor dispor de máquina própria. A alternativa que vem sendo testada é a formação de cooperativas ou outra forma de associação comunitária, o que permite o uso compartilhado da máquina, com sensível redução de custos.

Capoeira enriquecida
Para melhorar a prática, os pesquisadores testaram diversas espécies vegetais introduzidas na região, que tivessem a característica de se desenvolverem mais rapidamente e formar um volume maior de massa verde. Essa massa triturada não apenas forma uma palhada de cobertura do solo, melhorando suas propriedades físicas e químicas, como permite um ganho adicional no uso da terra. Pelo sistema dominante nas regiões estudadas, o agricultor semeia milho ou planta mandioca em uma determinada área, deixando o quinhão colhido em pousio por até quatro anos, a fim de formar uma capoeira consistente, que justifique a queimada. Com a trituração da capoeira, o agricultor pode manter a prática do pousio, rotacionando as áreas da propriedade que são cultivadas, porém reduzindo o tempo entre cultivos para dois anos. O pousio é uma prática interessante do ponto de vista da conservação do solo e a trituração da capoeira permite reter no local importantes elementos nutritivos, além de melhorar o teor de matéria orgânica e de agregação do solo.
  Seqüestro de carbono
Um dos maiores desafios que vêm sendo enfrentados por cientistas de todos os países é o aquecimento global, fruto do despejo de milhões de toneladas diárias de gases poluentes na atmosfera. De forma simplificada, o aquecimento global pode ser combatido pela redução ou eliminação das emissões poluentes (a proposta do protocolo de Kyoto, bombardeada pelos EUA), ou através do processo denominado "seqüestro de carbono", que significa retirar da atmosfera o dióxido de carbono, fixando-o através de vegetais e dificultando seu retorno ao componente atmosférico do ciclo do carbono. Triturar e manter junto ao solo a palhada da capoeira é uma das formas de seqüestro de carbono, que pode ser aplicada com reais benefícios, não apenas ao meio ambiente, porém com vantagens econômicas para o agricultor. A utilização de espécies introduzidas, de crescimento rápido, como a Acácia auriculiformis e A. mangium, originárias da América Central, permite melhorar o processo de seqüestro de carbono, em virtude da sua velocidade de crescimento e do grande volume de massa verde pois, nessas condições, a fixação do carbono é mais intensa que em comunidades vegetais que já atingiram seu ápice de desenvolvimento. Cremos que o aspecto mais importante deste trabalho seja a demonstração de que sempre existem alternativas tecnológicas que são mais brandas, menos agressivas ao ambiente e economicamente viáveis.

Multifuncionalidade da Agricultura

Décio Luiz Gazzoni

A agricultura, na transição de milênios, também se encontra em transição. Sai de cena o processo exclusivo de produção (agrícola ou pecuária) e abre-se o cenário para um complexo de novas atividades que ocupam o espaço rural. Aliás, o próprio conceito de espaço rural torna-se fluído, não podendo ficar restrito às placas de rodovia que indicam "perímetro urbano". A periferia das cidades passam a ser ocupadas por sistemas mistos como chácaras de lazer, clubes de campo, pesque-e-pague, parques de exposições, recintos de rodeios, etc. Por outro lado, o espaço rural é invadido por atividades anteriormente urbanas, como indústrias, processadores, depósitos, entre outras.   Para melhor entendimento, analisemos o exemplo da Serra Gaúcha, que virou sinônimo de qualidade de vida. Não é uma avaliação empírica, porém uma constatação amparada nos indicadores internacionais de qualidade de vida, adotados pela ONU. No início de 2002, a cidade de Feliz, no sopé da Serra, foi decantada em prosa e verso como a cidade com melhor qualidade de vida do Brasil. O que leva um "povoado" como Feliz a conquistar este galardão? De onde vem sua força? Da multifuncionalidade da agricultura, base do emprego, renda e desenvolvimento da comunidade. As cadeias produtivas que movimentam a cidade têm, em comum, a agropecuária como componente mais importante.   A Serra Gaúcha é um dos exemplos mais acabados do conceito e do sucesso de uma agricultura multifuncional. Mas, foi sempre assim? Não, e quero dar o testemunho de quem nasceu e cresceu em Bento Gonçalves, cidade encravada na Encosta Superior do Nordeste - nome oficial da Serra Gaúcha. A colonização da região pelos imigrantes europeus, em especial italianos e alemães, ocorreu na segunda metade do século XIX. Lembro das tertúlias em que meus avós teatralizavam as peripécias dos migrantes recém-chegados da Itália, abandonando seu país por absoluta falta de perspectivas.

Pioneiros mas empreendedores

Aqui aportavam sem conhecer a língua, com a roupa do corpo e mais duas mudas na mala, "dopo trenta e sei giorni di machina a vapore". Abundavam apenas qualidades como esperança, persistência, coragem e visão de negócio. Auxiliava-os a tradição de muitas gerações sofridas, a cultura milenar da Europa e o espírito empreendedor. Em chegando, os migrantes recebiam algumas léguas de terra precariamente demarcadas, invariavelmente uma encosta de morro, onde algum solo poderia ser vislumbrado entre o pedregulho. Solidariedade e apoio mútuo substituíam ferramentas, sementes e fertilizantes. Agrotóxicos sequer existiam.

 

  Minhas lembranças remontam aos anos 50, quando ainda persistia a pobreza. Uma pobreza digna e democrática. Fortunas eram raras, contavam-se-nas nos dedos. As famílias mais abastadas eram admiradas pelo suor desprendido e por sua capacidade empresarial e de gestão. Fome zero, assim como miséria ou analfabetismo zero! Todos os habitantes tinham uma fonte de renda, o que comer e uma casa para morar. A força vinha do que hoje se emoldura como agricultura multifuncional, o pano de fundo do Novo Rural, a visão brasileira da agricultura multifuncional.

 

 

  Pelo agricultor da Serra Gaúcha nunca passou a idéia de perpetuar a pobreza, sempre houve uma confiança cega em dias melhores, no progresso continuado. O segredo está no entendimento da diversificação de atividades (diversificando riscos, ameaças e oportunidades), no associativismo e no engajamento comunitário, na agregação de valor. Historicamente, o agricultor típico da Serra Gaúcha não vende trigo ou milho, ele leva ao consumidor pães, bolos, tortas, brioches, bolachas e biscoitos, devidamente recheados e embalados, etiquetados e diferenciados. Pode até vender a uva (selecionada, embalada e etiquetada), mas seu negócio é vender o vinho, a grappa, o brandy ou o vinagre, distanciando-se da álea mercadológica.

Propriedade pequena porém sustentável

No rastro do agricultor multifuncional surgiram cidades pujantes como Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Gramado e outras, onde é muito difícil separar o rural do urbano, se forem usados conceitos rígidos, que até podem ser válidos para outras regiões. A mesa variada, barata e farta é hoje um dos símbolos da região, tornando a culinária um atrativo negocial da urbe, porém com forte lastro do rural. A própria diversificação econômica e a pujança das cidades somente pode ser concretizada a partir do acúmulo de capital, da experiência em gestão empresarial e do traquejo no domínio de processos, que formam a base de uma agropecuária com matizes multifuncionais.   É importante destacar que sempre haverá uma agricultura empresarialmente forte, pautada em comodities, cujo diferencial será a economia de escala. Essa agricultura, que possui pequena margem por unidade de área produtiva, é intensiva em capital e tecnologia e escassa em trabalho. Sua viabilidade decorre da larga escala, porém o seu conceito não embute a proliferação dos empregos na mesma magnitude da multiplicação da receita. A agricultura francamente comercial sempre terá novas oportunidades, como a que surge no horizonte do terceiro milênio, focada no dueto bioenergia - alimentos, centrada em produtos com alto teor de carboidratos, oleaginosas e no reflorestamento. Porém, essa mesma oportunidade estará posta para a pequena propriedade, seja na geração de energia para auto-abastecimento ou para o atendimento da demanda comunitária.   Entretanto, é no pequeno espaço, na agricultura familiar e na pequena propriedade que a agricultura multifuncional resplandece com seu arco de oportunidades econômicas e comerciais, com profundo senso social e de convivência com os preceitos de preservação ambiental. Enquanto a agricultura francamente empresarial permite a exploração pecuária, de bois ou búfalos, em larga escala, a pequena propriedade pode beneficiar-se de criações exóticas, com forte apelo de consumo, que se traduz em produtos de maior valor intrínseco no processo de comercialização.

 

Criatividade

Neste particular, a avestruz se constitui no paradigma, por ser exótica, de introdução recente e de rápida expansão, gerando muito interesse no meio rural. Além da carne apreciada, o que permite colocá-la no mercado a preços altamente remuneradores, da avestruz o criador pode aproveitar tanto as penas quanto o couro, expandindo o leque de negócios. Seu parente próximo, a ema, pode ser outro exemplo negocial, o mesmo se aplicando a jacarés, rãs, alcançando camarões ou pequenos animais, como coelhos ou perdizes.

 

 

 

 

  A agricultura multifuncional depende da criatividade em vislumbrar oportunidades de negócios. Um exemplo didático está na associação lazer e negócios. Mesmo enfrentando em seu início o preconceito de beócios que se imaginam pescadores - aquele que garganteia seus feitos, mas que, lá no fundo não é de nada, e que estufa o peito para vangloriar-se que não pesca em poça d’água. Infenso aos que não queriam expor a sua falta de habilidade e pendor para a pesca aos outros adeptos do hobby, os micro-empresários rurais investiram nos néo-pescadores, potencialidades latentes que borbotam aos milhões no meio urbano, e que acabaram sendo atraídos pela febre dos pesque-e-pague, que vicejam na periferia das cidades e no meio rural.

 

 

 

  Atividade típica de quem dispõe de pouco espaço para abrigar um empreendimento sustentável, o pesque-e-pague alimenta toda uma cadeia de interesses negociais, desde os materiais e insumos para pesca, os alevinos, a ração até o processamento do peixe. Além do lazer da fisga, a atividade engloba bar, restaurante, parque infantil, áreas para prática de esportes e outras atividades de interesse de seu público. Os mais arrojados agregaram festas temáticas ou música ao vivo, do tipo "um banquinho e um violão". Embora em menor escala, porém dentro dos mesmos propósitos, surgem as fazendas de caça, que criam animais para atrair caçadores provenientes do meio urbano, uma expansão do antigo conceito dos clubes de caça e pesca.

Leque de oportunidades

Na fricção da produção animal vem os haras. Até aí nada de novo, há séculos a criação de cavalos é um bom negócio. Mas, que tal pensar em escola de equitação? Não para jóqueis profissionais, mas para o mero lazer? Ou aluguel de baias e pasto para a égua de estimação da caçula de uma família urbana? Ou, a nova onda, a equinoterapia, a recente descoberta de como o cavalgar e o próprio contato com os cavalos é surpreendentemente útil em terapias de enfermidades físicas ou mentais?

 

 

  Enquanto isso, na área vegetal, o agricultor multifuncional que se preza não entrega alface e repolho para o atravessador. Se ainda não o é, almeja ser um produtor orgânico. No pós-colheita, efetua um pré-processamento, seleção e limpeza de tomates, pepinos e rabanetes. No extremo, as verduras e legumes são picados e embalados, prontas para temperar e consumir. Aqui a criatividade captou a oportunidade do consumidor que não tem tempo para preparar uma refeição elaborada, ou que pretende investir o seu tempo em outras atividades.   O espaço se abre para um leque de produtos naturais e macrobióticos, essências e temperos. Cogumelos são um "must" e sempre encontram consumidores. O sistema de produção, o processamento e a embalagem multiplicam a receita do produtor. As frutas atendem as exigências de qualidade do mercado, as flores e outras plantas ornamentais, os temperos, aromáticos, fitoterápicos e outras potencialidades da nossa biodiversidade brotam da cornucópia do empresário do novo rural brasileiro. Mesmo que esse empresário se valha apenas do tempo parcial da mulher e três filhos, além de escassos empregados fixos.

Lazer

Essa mesma família diversifica as atividades, produzindo bebidas como sucos, néctares ou destilados alcoólicos e licores ou macerados de ervas, inclusive aproveitando as propriedades terapêuticas da nossa flora. Das frutas saem as compotas, as geléias, as passas e outras delícias. De outros produtos vegetais brotam as conservas, o tomate seco e outras opções de consumo apreciadas e particularmente valorizadas pela sua característica artesanal. Do leite produz-se o queijo, a coalhada, o iogurte, a ricota, a manteiga e outros derivados lácteos. Das carnes extrai-se charque, salame, copa, mortadela e outros embutidos. A marca da agroindustrialização passa pela agregação de valor, condição essencial para conferir sustentabilidade na ausência de escala da propriedade.

 

  Festa, que ninguém é de ferro! Sim, festa e outras opções de lazer não deixam de ser boas oportunidades de negócio no meio rural. Aqui, mais que nos outros segmentos, vale a criatividade. Vale quadrilha de São João em plena fazenda, complexos hípicos bem organizados, festa de rodeio, leilões, exposições agropecuárias, shows folclóricos, bailões e bailinhos. Vale a chácara para o churrasco de final de semana, para o futebol, a festa de aniversário do caçula ou de casamento do primogênito. O lazer rural, ao contrário do que possa ser imaginado, vive do público urbano, seu maior freqüentador. O movimento financeiro estimado dessas atividades ultrapassa a R$ 20 bilhões, um agregado que rivaliza – quem diria! com a produção brasileira de soja.   Na mesma linha do lazer, começam a ganhar espaço os hotéis fazendas e as fazendas hotéis, iceberg de um conjunto de atividades que formam a opção do turismo rural. Espaços sofisticados ou espaços com a rusticidade e a simplicidade da roça. Acordar às 4 h da matina para tentar, desajeitadamente, ordenhar a teta da vaca. Caminhar pelos campos, para aguçar os sentidos. Sentir o cheiro de bosta, observar o serpenteio do riacho, ouvir o arrulho de ximangos, guarubas, acauãs, açores, alcíones, urutaus, alvéloas e taralhões, aves virtuais para reclusos em apartamentos, acostumados a pombinhas, pardais e andorinhas ou aos abutres do lixão.

 

 

 

Diversão

O espaço rural se presta tanto a prosaicas diversões infantis, cercada de cuidados e segurança, até as trilhas e o acampamento no mato, para trazer à tona a porção selvagem de cada um de nós ou, no extremo, a prática de esportes radicais, como o rapel, a escalada, a canoagem ou os vôos de asa delta.   Entra a noite, mas os negócios continuam. É hora de saborear a legítima comida do caipira mineiro ou o carreteiro do peão gaúcho. Entrar a noite em tertúlias, ao som de violas caipiras ou acordeonas. Pilotando o fogão ou o instrumento musical, sempre um membro da família, pilastra da sustentabilidade dos pequenos empreendimentos rurais.

Impossível esgotar, neste espaço, todas as facetas dessa revolução fascinante da introversão do Brasil em sua vocação maior, da busca de oportunidades na área rural, quando elas escasseiam no meio urbano. Até porque a revolução está em seu início, longe de esgotar-se. A dinâmica do novo rural brasileiro possui o condão de resgatar a dignidade de milhões de famílias do interior do Brasil, permitindo reacender a chama da esperança em dias melhores, invertendo o sinal dos atrativos que induzem as migrações internas. O Brasil urbano, mais do que admirar, precisa mirar-se no exemplo pujante do novo Brasil rural.

 

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Aspectos conceituais

É muito importante evitar a associação exclusiva entre a realidade de uma agricultura de múltiplas funções com o uso político que a União Européia vem fazendo da agricultura multifuncional. O Velho Continente foi o espaço geográfico onde o fenômeno da multifuncionalidade agrícola primeiro se manifestou e onde se consolidou. No embate entre manter ou desativar subsídios agrícolas, o conceito de multifuncionalidade caiu como uma luva para tonificar os corroídos argumentos dos lobies protecionistas.

  Caracteriza-se a multifuncionalidade quando a agricultura rompe o viés da unilateralidade da produção de alimentos para atuar na proteção do meio ambiente e da paisagem, como geradora de empregos, protetora do território, dos recursos naturais e da cultura local, além de outras atividades como o lazer. Dessa forma, o cidadão urbano também é beneficiado, indiretamente, pois com a contenção do êxodo rural evita-se o inchamento das cidades, a demanda por recursos (habitação, saneamento, saúde, educação, transporte, etc) e a disputa por empregos urbanos.

 

 

 

  Na Agenda 21, um dos documentos produzidos durante a ECO-92, ressalta-se o "aspecto multifuncional da agricultura, particularmente com respeito à segurança alimentar e o desenvolvimento sustentável". Posteriormente, na reunião do comitê dos Ministros da Agricultura dos países membros da OECD, realizada em 1998, estabeleceu-se que "além de sua função primária de produção de fibras e alimentos, a atividade agrícola pode também moldar a paisagem, prover benefícios ambientais tais como conservação dos solos, gestão sustentável dos recursos naturais renováveis e preservação da biodiversidade e contribuir para a viabilidade sócioeconômica em várias áreas rurais. Assim, a agricultura é multifuncional quando tem uma ou várias funções adicionadas ao seu papel primário de produção de fibras e alimentos".

De posse dessa elaboração conceitual, que reflete uma realidade de campo, os defensores do protecionismo da agricultura européia, entenderam como sendo altamente justo que, além do preço do alimento (pago pelo consumidor), competiria ao cidadão (contribuinte) pagar pelos demais serviços da agricultura, por seus benefícios serem difusos no seio da sociedade. Esse tema foi um dos mais controversos da reunião da OMC realizada em Seattle, onde, pela primeira vez, o argumento foi esgrimido pelos negociadores europeus.   À margem do mau uso de uma realidade em que, para beneficiar agricultores europeus, penalizam-se todos os demais agricultores de países essencialmente agrícolas, o multifacetamento das atividades agrícolas é uma das marcas da agricultura moderna, complemento da grande agricultura empresarial, focada em algumas poucas atividades quando não em uma atividade exclusiva.   A característica da multifuncionalidade é um atributo associado à pequena propriedade e à agricultura familiar. Nesse segmento não é possível concentrar-se em produtos agrícolas de baixa rentabilidade por unidade de área e a busca da sustentabilidade deve concentrar-se em outras oportunidades, como o investimento em produtos de alto valor intrínseco, na agregação de valor, na diversificação de atividades e na maximização do retorno do trabalho e de tecnologias adequadas. Para tanto um conjunto de desafios necessita ser superado, tanto em termos de políticas públicas, quanto em desenvolvimento e transferência de tecnologias de processos e de gestão empresarial.

A soja RR e seus dilemas

Décio Luiz Gazzoni

Nos EUA quase dois terços da área de soja é semeada com soja resistente ao glifosato e na Argentina ela é utilizada em, praticamente, toda a área. Para o mercado internacional, enquanto comoditie, o novo padrão estabelecido é a soja RR, sendo as cotações a ela referenciadas. O Brasil era o único grande produtor de soja do mundo que, oficialmente, ainda não cultivava soja RR. A MP 131 libera, para plantio na safra 2003/2004, a semente estocada em poder dos agricultores, para seu próprio uso.

  Indecisão
A MP não soluciona o "imbróglio" da biotecnologia agrícola. Enquanto os medicamentos "biotecnológicos" encontram livre trânsito, os produtos agrícolas são questionados. Cabe refletir sobre o ensinamento do padre Ricci, superior geral dos jesuítas, quando pressionado a alterar profundamente a constituição da Companhia de Jesus. "Sint ut sunt, aut non sint", decretou o jesuíta ("Que as coisas sejam como são ou então não sejam"). Insisto – em coerência com a posição que sempre defendi – que o Brasil não pode ficar, eternamente, no acostamento das tendências mundiais. Ou bem nos engajamos na corrente dominante da biotecnologia ("sint ut sunt"), sem qualquer concessão em relação à biossegurança, ou investimos, fortemente, nos nossos institutos de pesquisa, para pavimentarmos um caminho alternativo ("aut non sint"). O que não podemos é ignorar que a competitividade no comércio internacional repousa na tecnologia. Postergarmos a decisão significa adiarmos a realização ou declinarmos do nosso potencial agrícola, matriz de emprego, renda e desenvolvimento.
 

Ágio e Deságio
Caso houvesse alguma perspectiva de prejuízo com a soja RR, a pressão dos agricultores não seria tão avassaladora. E o Governo Federal, fortemente dependente das divisas da exportação de soja, não a liberaria. Após debruçar-se sobre as cotações dos últimos cinco anos, o analista Flávio França Jr., da Agência Safras e Mercados, demonstrou que o mercado não trabalha com ágio para soja convencional ou com deságio para a transgênica. Observe que a Argentina duplicou a venda de soja à Europa, coincidindo com o plantio de soja RR, que representa 99% da produção. Tanto a Europa quanto a China, maiores compradores mundiais de soja, exigem que o país exportador certifique que a partida de soja seja transgênica ou convencional, para efeito de rotulagem, sem que isto altere a decisão de compra ou a cotação da partida de soja.
  Saúde
Os opositores da soja RR denunciam não existirem evidências científicas, definitivas, de que a soja RR não causa problemas à saúde humana. Em contraposição, seus defensores alegam que não existe qualquer evidência de que algum problema de saúde possa decorrer do consumo de soja transgênica. Enveredando por outra trilha de raciocínio, é incontestável que o tamanho do mercado, os prêmios e os descontos são determinados pelo consumidor, por avaliações objetivas ou por percepções subjetivas. O avanço extremamente rápido da soja RR, hoje representando mais de 50% da soja produzida no mundo, deixa transparecer que a maior parcela da opinião pública não vislumbra riscos à saúde, derivadas de seu consumo. Em tempos de culto à saúde, se dúvidas persistissem, a opinião pública mundial enxotaria do mercado os alimentos derivados de OGMs, incluindo a soja RR. O consumidor foi tranqüilizado pelo "efeito de massa", representado por mais de 300 milhões de toneladas de soja transgênica, consumidas nos últimos anos, sem que aflorasse qualquer suspeita de efeito alergênico ou outro distúrbio de saúde. Lembrando que a soja transgênica, produzida nos EUA ou na Argentina, é consumida nos países do Primeiro Mundo. Seus cidadãos foram as cobaias, sujeitos a eventuais riscos à saúde. Não apenas os órgãos sanitários dos países ricos permitiram que o "teste" ocorresse com sua população, como não houve uma reação civil cuja magnitude impedisse esse "teste".
 

Ambiente
O principal problema ambiental aventado é o fluxo gênico. Nas condições brasileiras, o risco prático de que esse fenômeno venha a ocorrer é nulo. A soja é uma planta autógama e a polinização ocorre com a flor ainda fechada. O pólen, após a abertura da flor, possui uma viabilidade muito baixa. E a polinização entre flores necessita do auxilio de polinizadores, escassos na cultura. Ou seja, mesmo entre diferentes cultivares de soja, a polinização cruzada seria difícil, pelas restrições que apresenta. Em se tratando de espécies diferentes, ou seja, o pólen da soja (Glycine max) fecundando outras espécies vegetais, a probabilidade é ainda menor, pois não existem parentes botânicos da soja no Brasil, com compatibilidade cromossômica, viabilizasse a hibridação. Este poderia ser, eventualmente, um problema no Nordeste da China, onde existem espécies de soja selvagem. Similarmente ao exposto para o tópico saúde, em uma quadra da civilização em que a proteção ambiental é um "cult", a percepção da maior parcela da opinião pública é de que não existem perigos palpáveis pelo cultivo da soja RR, paradoxalmente podendo até ser favorecida, pela menor descarga de herbicidas no ambiente.
  Vantagens
Propalam-se, de uma parte, ganhos financeiros com o cultivo de soja RR (por menor uso de herbicidas), e de outra que a mesma apresenta menor produtividade. Os institutos de pesquisa brasileiros nunca puderam comprovar qualquer das afirmativas. Agora, essa dúvida poderá ser elucidada, comparando-se produção, receitas e despesas, em similaridade de condições. Pessoalmente, entendo que a vantagem da soja RR é a simplificação do controle de plantas daninhas, menos dependente de tecnicalidades e de condicionamentos de solo, clima e dimensionamento de parque de máquinas. Em relação à produtividade da lavoura não é lícito supor qualquer vantagem da soja RR, porque a tecnologia resume-se à resistência ao herbicida glifosato, não interferindo com outras características agronômicas.
 

Primeiro dilema
Removidas as constrições legais e reduzidas as angústias pertinentes à saúde e ao ambiente, entendo que o primeiro dilema da soja RR legalizada será o pagamento da taxa tecnológica ao detentor da patente. O Brasil será a arena para o primeiro teste real, em escala mundial. Na Argentina não há cobrança da taxa tecnológica e, nos EUA, qualquer valor cobrado é fictício, pois o subsídio encarrega-se de anular o impacto sobre o custo de produção. Comenta-se no mercado que o valor seria superior a US$17,00/ha. Entendo ser o valor elevado, significando uma apropriação quase integral do eventual ganho financeiro com o menor uso de herbicidas. Em decorrência, antevejo uma ameaça ao sistema de sementes brasileiro, fortemente dependente da soja. Para evitar o pagamento da taxa tecnológica, incidente sobre a semente, o produtor utilizar-se-á da permissão legal de produzi-la para seu uso. Por esse raciocínio pode-se especular, também, que fica entreaberta a brecha para comercializar, ilegalmente, a semente assim produzida, sonegando impostos, roialties e a própria taxa tecnológica.
  Segundo dilema
Desde o surgimento da soja RR que manifesto minha preocupação quanto ao desenvolvimento de plantas invasoras resistentes ao glifosato. A pressão de seleção que será exercida sobre as invasoras será de tal ordem que, em pouco tempo, seria possível surgir ervas daninhas resistentes ao glifosato, em grande escala. Esse fenômeno indesejável não é novidade nem é inevitável. Plantas daninhas resistentes ao glifosato foram identificadas nos EUA e na Argentina. Durante o II Congresso Brasileiro de Soja, o tema foi analisado e os resultados das pesquisas dão guarida à preocupação. Os agricultores deverão atentar para o manejo de plantas daninhas, executando rotação de culturas, diversificando formas de controle, alternando cultivares convencionais e transgênicas e, inclusive – se for o caso – variando a cultivar de soja transgênica, quando outras opções estiverem disponíveis. O agricultor relapso corre o risco de enormes prejuízos financeiros e muitas dificuldades para conduzir sua lavoura. Mais do que nunca, vale a velha máxima: consulte o seu agrônomo!

Subsídios e pobreza

Décio Luiz Gazzoni

Há dois anos referi que o protecionismo americano equivalia a "fazer transfusão de sangue do pedestre atropelado ao caminhoneiro que o atropelou". Quando as demais medidas protecionistas não foram suficientes para conferir competitividade, entra em cena o Tesouro Americano e pergunta, como na canção de Vicente Celestino: "Machucou-se o pobre filho meu?". No ano passado a resposta foi: "Sim, mamãe Tesouro. Você poderia arranjar- me uns 30 bilhões de dólares para cobrir a minha ineficiência?" E a mamãe Tesouro concedeu!   Números
Em 2000, o subsídio americano equivaleu a mais de 200% do valor anual por eles expendido entre 1990 e 97; correspondeu a 35% do agronegócio brasileiro, ou a 80% do valor da produção brasileira; aproximou-se do valor da exportação do agronegócio brasileiro; o subsídio à soja equiparou-se a 60% das exportações da soja brasileira. Os EUA acrescentam, em forma de subsídio, 60% a mais de renda líquida aos seus produtores. Um contra-senso, porque o acordo da OMC é claro nos conceitos (comércio liberalizado, nada de subsídios) e mais claro ainda quando concedeu um período de graça aos americanos e europeus, subordinado à retirada gradual dos subsídios, o qual já venceu.
 

O discurso afronta a prática
Ao contrário do que pregam, e em oposição às regras internacionais que eles impingiram ao mundo, os americanos aumentaram escandalosamente seus subsídios. O "Loan Deficiency Payment" garante ao produtor de soja US$ 5,26 por bushel, o que significa risco zero para o produtor dos EUA. Enquanto isso, o produtor brasileiro está entregue ao mercado. Mas, hoje eu gostaria de falar de algodão. A FAO estima que mais de 11 milhões de africanos dependem da cultura do algodão para comprar algum medicamento, roupa, sal e outras necessidades que a lavoura de subsistência não provê. Eles não possuem capital para estruturar-se e usar insumos modernos, além de não irrigar sua lavoura. Nessa condição, apenas a mão-de-obra prá lá de aviltada torna-os competitivos e permite que ingressem no mercado internacional. O processamento do algodão (tecidos, óleo ou sabão) é responsável pelos empregos e pela renda de parcela ponderável da população desses países.
  Competitividade fajuta
A China, maior produtor mundial, e os EUA, maior exportador, subsidiam, pesadamente, o seu algodão. O mesmo ocorre com a UE (Grécia e Espanha). Já os agricultores africanos, coitados, dão-se por felizes quando o seu Governo não os atrapalha, posto que impossível subsidiar. Eles estão sendo sufocados por US$4 bilhões de subsídio ao algodão americano, que os está expulsando do mercado. Isso ocorre porque, no ano passado, o algodão bateu no piso "all time" das cotações internacionais (US$0,38/lb). Mesmo assim, os americanos aumentaram sua produção e sua exportação, posto que o Governo paga ao produtor de algodão subsídios equivalentes a US$0,69/lb. Parece incrível, porém 60% da receita do cotonicultor americano provém dos subsídios. Assim, até eu transmuto-me em empresário de sucesso!
 

Prejuízos
Na Economia, como na Física, nada se ganha, nada se perde, tudo se transforma. Para que os cotonicultores americanos forrassem as burras, os africanos perderam US$300 milhões. Apenas em Burkina Faso, 1% do PIB evaporou-se, enquanto escoaram pelo ralo 12% das exportações. Alguns dos países produtores compõem o programa de perdão da dívida do FMI e do BIRD. Ocorre que Burkina Faso, por exemplo, perdeu mais com o golpe do subsídio americano do que deixou de pagar com o perdão da dívida. Os EUA alardeiam mundo afora seus programas de ajuda a países pobres. No caso de Benin e Mali, melhor teriam feito se, ao invés de enviar a esmola, não tivessem subsidiado seu algodão. Em Benin, a UNCTAD estima que 250 mil pessoas foram jogadas abaixo da linha de pobreza pelo subsídio americano. No total, 11 milhões foram prejudicados na África, para beneficiar 25 mil privilegiados nos EUA.
  Iniqüidade
Burkina Faso, Mali, Benin, Chade, Senegal são países em que a população vive com menos de US$1/dia! E são justamente esses países os mais prejudicados pelo subsídio americano, que liquidou a lavoura e os empregos na cadeia produtiva. Para efeito de comparação, o subsídio ao algodão americano é superior ao PIB de Mali ou de Burkina. Se você ainda não havia pensado nisso, reflita o quanto a riqueza de cidadãos do Primeiro Mundo depende da fome e da doença de cidadãos do andar de baixo.

O Princípio da Precaução

Décio Luiz Gazzoni

Na Rio-92 o Princípio da Precaução foi definido como "A garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do conhecimento, não podem ser ainda identificados. A ausência da certeza científica formal, a existência de um risco de um dano sério ou irreversível, requer a implementação de medidas que possam prever este dano".   O Princípio tem servido como justificativa para ações díspares, como tentar banir o uso de OGMs ou invadir o Iraque. Invadiu-se um país com a justificativa de que "quiçá, talvez, eventualmente, em um futuro imprevisível, pode haver uma remota possibilidade de que o ditador que comanda esse país venha a representar algum risco aos interesses americanos". Consumada a invasão, restou que o arremedo de ditador sequer tinha condições de defender a si e aos seus asseclas, com um simulacro de exército sem armas, munições, uniforme ou alimentos, quanto mais representar o mínimo perigo para qualquer país, menos ainda para os EUA, que detém um terço do poderio bélico do planeta e a maior rede de inteligência e de informações estratégicas do mundo.

Mau uso
A invasão do Iraque não é uma exceção. Na criação da OMC, foi elaborado o SPS (Sanitary and Phytosanitary Measures), um código de princípios que rege todas as regras sanitárias do comercio internacional. O artigo 2.2 do SPS refere "Os Membros devem assegurar que todas as medidas sanitárias ou fitossanitárias serão aplicadas somente na extensão necessária para proteger a vida e a saúde humana, animal ou das plantas, baseadas em princípios científicos e não serão mantidas aquelas que não disponham de suficiente evidência cientifica".
  O SPS abre uma única exceção a esse princípio (Art. 5.7): "Nos casos em que a evidência científica relevante é insuficiente, um Membro pode, provisoriamente, adotar medidas sanitárias ou fitossanitárias com base na informação pertinente disponível, incluindo aquelas obtidas por organizações internacionais relevantes ou valendo-se de medidas sanitárias utilizadas por outros Membros. Nessas circunstâncias, os Membros têm a obrigação de obter informação adicional necessária para uma análise de risco objetiva e rever as suas medidas sanitárias em um período de tempo razoável".

Fazer o jogo do adversário…
Esse artigo foi imposto pelos países ricos, por disporem de cientistas e recursos para atender às suas exigências. Outros países, como o Brasil, resolveram jogar o jogo, dentro das regras. Aprimoraram suas estruturas científicas e de defesa agropecuária e tornaram-se competitivos. Conseqüentemente, foi preciso mudar a regra para impedir o acesso desses "arrivistas" ao mercado.
  Os países ricos forçaram a livre interpretação do artigo. Assim, ao sabor de suas conveniências, quando o risco é imponderável ou quando, a seu critério, a informação científica é insuficiente, aplicam o Princípio da Precaução, não previsto no SPS. O nome correto para essa manobra é "barreira comercial disfarçada". Uma barreira derivada da distorção do principio científico e do mau uso do Princípio da Precaução, para barrar o comércio agrícola de países emergentes.

...ou jogar o seu jogo?
Quem captou manobras dessa estirpe, com muita astúcia, foi Stephen Kanitz que afirma "Estamos sempre atolados e discutindo os problemas econômicos do passado, sem tempo para discutir as tendências do futuro" O analista também aponta: "A verdade é que nunca vamos ganhar jogos com regras escritas por outros. Jogos econômicos são ganhos muito antes de o time entrar em campo, nos meses de treinamento intensivo, na organização e administração do time. O Brasil sempre entra em campo anos depois de o jogo ter começado. Qual será o próximo jogo econômico internacional?"
  Às considerações de Kanitz eu aditaria: não vamos ganhar jogos brandindo os motes e reforçando os argumentos dos adversários. O Princípio é uma ferramenta útil, se bem utilizada. Porém presta um desserviço ao país quando reverbera os argumentos dos países ricos para barrar a entrada dos nossos produtos, muito mais competitivos que os deles.

Julgamento subjetivo
Imagine-se na boca de uma caverna escura. A decisão de vasculhá-la dependerá da noção dos perigos e dos benefícios da incursão. Na ausência de informações, assume-se que cavernas são habitats de aranhas, escorpiões, serpentes e outros animais peçonhentos, fungos, bactérias e outros patógenos.. A decisão será por não ingressar. Porém, qual será a decisão se lhe for afiançado que a caverna abriga um veio de diamantes? E se estudos preliminares indicarem que os habitantes da caverna não representam perigo? Ou se souber que dezenas de pessoas trilharam a caverna e retornaram incólumes, com sua quota de diamantes?

 

 

 

Em todos os cenários não existe evidência científica irrefutável, variando o grau de informação, a percepção do risco e a avaliação do custo benefício. Ou seja, fatores imponderáveis e descolados da ortodoxia científica formam a base da decisão de ingressar na caverna. A confusão se instala quando recebemos informações esparsas e de sinais trocados. Algo como dispor da informação de que muitas pessoas ingressaram em muitas cavernas e de lá retornaram com os seus tesouros. Porém, essas pessoas alardeiam que não existe informação suficiente para aquilatar os perigos de ingressar na caverna e que o tesouro extraído não compensaria os riscos. Assim, didaticamente, transparece a "barreira" ou, no ditado popular, "faça o que eu digo e não o que eu faço".

 

Reflexão Analítica

O Princípio da Precaução foi incorporado em tratados e legislações, faz parte do ideário dos defensores do meio ambiente, porém não se trata de uma ferramenta científica. O Dr. John Gray, da Universidade de Oslo afirma que, por definição o Princípio não possui qualquer embasamento científico. Isso posto, analisemos os seus principais componentes:

Pró-atividade – Antecipa-se às evidências científicas do perigo ou seu risco, assumindo que a inércia seria mais custosa à sociedade que a precaução.   Custo/efetividade – A proporcionalidade da precaução deve cotejar os ganhos sociais e ambientais, vis a vis os seus custos.   Salvaguarda – Qual o limite de adaptabilidade dos sistemas naturais e sua vulnerabilidade às mudanças?

Valor intrínseco – Qual a importância dos serviços dos sistemas naturais e dos bens e produtos ofertados pela Natureza?   Responsabilidade da prova – Inverte-se o princípio geral do direito (Ao acusador cabe o ônus da prova), pois o responsável pelo processo deve demonstrar a ausência de danos ambientais, além dos limites aceitáveis;   Planejamento de longo prazo – O impacto ambiental deve ser avaliado em horizontes de 25 a 100 anos;

Dívida ecológica – No passado recente, considerações ecológicas eram marginais nas atividades econômicas. Os novos agentes devem resgatar a dívida com o meio ambiente, sendo conservadores onde seus antepassados foram liberais.

Aspectos conceituais
Quando se analisa o Princípio da Precaução, ressaltam três aspectos prioritários. O primeiro deles resgata o tema da abordagem científica de um princípio que decorre do vácuo científico; o segundo aponta para o suporte de opinião pública frente às alternativas antípodas com as quais o cidadão é confrontado; finalmente, o terceiro aspecto chama para a racionalidade do custo benefício de sua aplicação. Wynne e McDonnel discorreram sobre os condicionantes dos julgamentos em um ambiente de incerteza, que são influenciados pelo conhecimento técnico similar, experiência, influência de especialistas, objetivos políticos da organização que coordena o julgamento, pela personalidade dos políticos envolvidos e pelo clima político dominante que envolve o ambiente dos cientistas chamados a opinar.
 

A ciência se pauta por alguns princípios como a formulação do modelo teórico, a experimentação e a repetibilidade, a verificação da consistência, a lógica da predição e as limitações da extrapolação. Do ponto de vista científico, a incerteza pode enquadrar-se como:

a. Inconsistência dos dados – Série histórica e/ou espacial sem consistência, com dúvidas sobre o rigor metodológico para sua obtenção, Modelos matemáticos podem utilizar a parca informação consistente, preenchendo as deficiências com a "melhor opinião";

b. Ignorância – A falta de conhecimento conduz à extrapolação do impacto em algumas espécies indicadoras para a biodiversidade. O avanço científico tem demonstrado a falácia dessas ilações;

c. Indeterminação – Não se dispõe de parâmetros de cada espécie, de informações sobre as populações ou das suas interações, tornando qualquer modelo mais próximo de uma loteria que de uma ferramenta científica.

Sustentação política
Em um ambiente de incerteza o recurso à Ciência é fluído, logo o embate ocorre em outros estamentos sociais. Observa-se a busca de negociação pública, o envolvimento de diferentes setores da comunidade, a formulação de acordos formais ou compromissos morais. Nesse ambiente, o pêndulo oscila desde o voluntarismo das conjecturas honestas ao atendimento dos interesses de grupos, sejam eles econômicos, comerciais ou de ONGs.
  Na falta de critérios rígidos e claros, instala-se um caos que dificulta o consenso, polariza as opiniões e divide os atores de acordo com seus alinhamentos ideológicos e de interesses. O desfiar de argumentos sem conhecimento científico irrefutável torna a discussão difusa, difícil de objetivar, suscetível a patrulhamentos e à selvageria do argumentum baculinum. A experiência mostra que a confusão na aplicação do Princípio da Precaução à questões pontuais é maior ao final do que no início do processo.

 

Custo benefício
A análise de custo benefício busca determinar a rentabilidade de um investimento, com base nas informações presentes e projeções futuras e no controle das principais variáveis. Em se tratando do Princípio da Precaução é impossível aferrar-se ao conceito clássico por lidar-se com a incerteza. Até a década de 80 os economistas subestimavam o valor dos serviços naturais, provocando o surgimento de uma especialidade dentro da Economia, congregando profissionais dedicados à mensuração acurada da contribuição dos serviços naturais. A aproximação da Economia com a Biologia permitiu enfocar a sustentabilidade dos sistemas, contribuindo para solidificar o Princípio da Precaução.

Considerações práticas
O Princípio surgiu na Alemanha, para proteger os recursos naturais ameaçados, difundindo-se pela Europa e outros países, transbordando da área ambiental para outros domínios do conhecimento. Sua aplicação envolve o custo do dano ambiental, representado pelas perdas de serviço ambiental, o custo da recuperação ou da substituição e a vulnerabilidade dos sistemas aos danos potenciais.

A Sociedade tem entendido a necessidade de precaver-se, sob determinadas circunstâncias, abrindo mão de ganhos ou submetendo-se a privações de alguma ordem, no presente, a fim de preservar o futuro, em cenários de incerteza.

 

 

Em se tratando de um tema em que a confiança e a credibilidade são fundamentais, posto não ser possível aplicar métodos científicos, em especial a estatística e os modelos preditivos, o mau uso da ferramenta pode levar ao descrédito e a falta de suporte social. Eis porque o Princípio deve ser utilizado com parcimônia, o debate deve pautar-se pela razoabilidade, balanceando os poucos dados confiáveis disponíveis, para obter o suporte social.

O desvirtuamento de sua aplicação, seja para justificar guerras de conquistas, em que objetivos políticos e econômicos são escamoteados sob um manto tênue de riscos futuros; ou o recurso ao Princípio para auferir vantagens comerciais decorrentes de barreiras insustentáveis à luz das evidências científicas, poderá ter como grande vítima justamente o que se pretende proteger: o meio ambiente e o futuro da Humanidade.

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