Aquecimento global e agricultura

Décio Luiz Gazzoni

A crer nas promessas de campanha do Presidente Barrack Obama, a postura dos EUA frente às ações necessárias para mitigar o aquecimento global em curso, sofrerão uma forte guinada. Não apenas no trato global da questão, assumindo a responsabilidade dos EUA como maior emissor mundial de gases de efeito estufa, porém, no particular, em relação ao apoio ao uso de energias renováveis, em larga escala. Neste contexto, é importante que o Brasil discuta profundamente o tema e se prepare para as reuniões multilaterais do Pós Kyoto, lutando com firmeza pela necessidade de ampliar o uso de energia renovável no mundo, particularmente biodiesel e etanol.   Dentre as conseqüências mais impactantes do aquecimento global está o seu impacto sobre a produção agrícola mundial, pelo aumento de temperatura (consequentemente da evapotranspiração) e pela mudança do regime pluviométrico, reduzindo a produtividade e tornando algumas áreas impróprias para a agricultura, no estado da arte da tecnologia agrícola. Esta discussão interessa duplamente ao Brasil, como país que detém o maior potencial de expansão da agricultura em escala mundial, tanto no aspecto de alimentos quanto de produção de agroenergia.   A crise alimentar de 2006-2008 demonstrou a fragilidade da oferta de alimentos do mundo. O rápido crescimento da procura para a alimentação animal e de biocombustíveis, aliada com rupturas no abastecimento agrícola causados pelo mau tempo, pragas agrícolas e de restrições à exportação em países-chave como a Índia e a Argentina, criaram o caos nos mercados internacionais, com disparada de preços de produtos agrícolas. Lidar com o desafio da volatilidade dos preços agrícolas, no curto prazo, foi assustador. Mas, no longo prazo, o desafio perpétuo de evitar uma crise alimentar sob condições de aquecimento global é muito mais grave. Os registros históricos mostram que as temperaturas extremas podem ser prejudiciais para a produtividade agrícola, levando a intervenções pontuais de alguns países para garantir o seu abastecimento interno e desorganizando o mercado internacional.

 

  Recentemente, os professores David. S. Battisti (do Department of Atmospheric Sciences, University of Washington), e Rosamond L. Naylor (do Program on Food Security and the Environment, Stanford University), publicaram um artigo muito interessante na revista Science (Vol. 323, 9/01/2009). De acordo com os autores, temperaturas mais elevadas podem ter consequências dramáticas para a produtividade agrícola, em decorrência para a segurança alimentar do planeta. Para o seu estudo, utilizaram dados de 23 modelos climáticos globais para mostrar uma alta probabilidade (> 90%) que, até ao final do século 21, as temperaturas durante o período de cultivo agrícola, em regiões tropicais e subtropicais do planeta, serão superiores à mais extrema temperatura registrada entre 1906 e 2006. Em regiões temperadas, as estações mais quentes já registradas passarão a ser o padrão, em muitos locais. Foram usados exemplos históricos para ilustrar a magnitude dos danos causados à produção agrícola, pelos extremos de temperatura. O estudo mostra que estes eventos observados de forma rara no passado, poderão tornar-se tendências firmes a longo prazo, se não houver investimentos suficientes para mitigação da elevação da temperatura e adaptação ao novo regime climático. Na seqüência, comentamos os pontos principais do estudo.  

 

Nas regiões tropicais e sub-tropicais do planeta, onde vivem mais de 3 bilhões de pessoas (cerca de 20% delas sobrevivendo com menos de US$2,00/dia) se concentra o maior risco de aumento da temperatura média. Justamente nestas regiões se localizam os países cuja economia é fortemente dependente do agronegócio, e cujas populações também dependem dele para sua sobrevivência. Como se verifica na Figura 1, a previsão dos autores do estudo (com probabilidade de ocorrência superior a 90%) é que a temperatura média durante a safra agrícola, em países tropicais e sub-tropicais (como o Brasil e grande parte da América Latina, África, Austrália e Sul da Ásia) seja superior ao máximo já observado até o momento. Estas conclusões concordam, em linhas gerais, com o relatório do Painel Internacional de Mudanças Climáticas, produzido em 2008.

  Portanto, a primeira questão que se impõe é: como as populações de países que dependem da agricultura subsistirão, com a previsão de impactos substanciais na produtividade agrícola? A segunda questão é: como garantir o abastecimento de alimentos e de biocombustíveis do mundo, se parte substancial da produção agrícola provém de países tropicais e sub-tropicais?   As perguntas são trascedentais porque os resultados de pesquisas e de modelos matemáticos, para a produção de grãos nessas regiões, demonstraram decréscimos de produtividade entre 2,5 a 16% para cada 1 ° C de aumento da temperatura média. Apesar da percepção geral que a agricultura em latitudes temperadas possa se beneficiar do incremento da temperatura para aumentar a produção de alimentos, as regiões temperadas na faixa de transição para sub-tropical também serão fortemente afetadas. A Figura 2 mostra que a temperatura média entre 2080 e 2100 deverá situar-se, aproximadamente, no limite das maiores temperaturas observadas ao longo do século XX – justamente aquelas que redundaram em frustração de safras agrícolas.

 

 

 

Figura 1. Distribuição da temperatura média durante a safra agrícola, em regiões tropicais e sub-tropicais. A linha azul mostra a distribuição da temperatura média observada entre 1900 e 2000 e a linha vermelha a previsão de temperatura entre 2080 e 2100. (Adaptado do artigo de Battisti e Naylor, 2009)
 

 

 

 

 

 

 

 


 

Figura 2. Distribuição da temperatura média durante a safra agrícola, em regiões temperadas. A linha azul mostra a distribuição da temperatura média observada entre 1900 e 2000 e a linha vermelha a previsão de temperatura entre 2080 e 2100. (Adaptado do artigo de Battisti e Naylor, 2009)
 

 

 

 

 


Desvio da temperatura media (o. C)

 

Figura 3. Número de verões com desvio da temperatura média (França). A linha azul mostra a distribuição da temperatura média observada entre 1900 e 2000 e a linha vermelha a previsão de temperatura entre 2080 e 2100. (Adaptado do artigo de Battisti e Naylor, 2009)

 

Desvio da temperatura media (o. C)

Figura 4. Número de verões com desvio da temperatura média (Ucrânia). A linha azul mostra a distribuição da temperatura média observada entre 1900 e 2000 e a linha vermelha a previsão de temperatura entre 2080 e 2100. (Adaptado do artigo de Battisti e Naylor, 2009)

 

Para colocar as Figuras 1 e 2 dentro de uma perspectiva de situações recentes de alta temperatura, pode-se relembrar a onda de calor que atingiu a Europa Ocidental, em 2003. Na oportunidade, um número estimado de 52.000 pessoas morreram entre junho e agosto, devido à intensa onda de calor. A onda foi mais intensa na França e no norte da Itália, onde mais de 30.000 pessoas pereceram. Na França, a temperatura média de verão foi de 3,6 ° C acima da média de longo prazo. Infelizmente, até ao final deste século, verões quentes como 2003, provavelmente serão a norma para o país (Fig. 3). A previsão para 2090 é que a media seja de 3,7o.C acima da média dos registros históricos, podendo chegar até absurdos 9,8º.C acima da média histórica!  

A situação apontada pelo modelo não é muito diferente para a Ucrânia, considerada um dos esteios da produção agrícola do continente (Fig. 4).

Elevadas temperaturas diurna e noturna, durante a maior parte do verão ocasiona a redução da água disponível no solo. O efeito conjunto de estresse térmico e hídrico provoca redução da área foliar e do desenvolvimento e enchimento de grãos de culturas como cereais ou soja, afetando também árvores frutíferas e provocando o amadurecimento acelerado cultura em 10 a 20 dias, além de causar estresses profundos nas criações (gado bovino, frango ou suínos).

 

Devido à onda de calor de 2003, a Itália experimentou uma queda recorde na produção de milho (36% sobre o ano anterior), enquanto na França a produção de milho e forragens diminuiu 30%, a produção frutícola diminuiu 25%, e a colheita do trigo (que tinha quase atingira a maturidade no momento em que o calor foi mais intenso) diminuiu apenas 21%.

Tomando outro exemplo, as temperaturas de verão extremamente elevadas na antiga União Soviética, em 1972, contribuiu para rupturas violentas no mercado mundial de cereais e de segurança alimentar, permanecendo como um "case" histórico de frustração de safra, pois o período 1972-1974 quebrou uma tendência de mais de 50 anos de queda de preços médios dos produtos agrícolas . O preço nominal do trigo saltou de US$60 para US$208/t.

 

Os dois exemplos citados acima se incluem entre os 10% de casos extremos de anomalias na temperatura média, observados entre 1906 e 2006, com a temperatura do verão variando de 2° a 4°C acima da média de longo prazo. Uma grande lição destes casos, bem como da crise alimentar 2006-2008 – que não foi integralmente devida aos problemas climáticos - é que as perturbações regionais podem, facilmente, tornam-se globais por natureza. Países frequentemente respondem à queda de produção e à volatilidade dos preços restringindo o comércio ou efetuando grandes compras de grãos nos mercados internacionais. Em ambos os casos, são atitudes que desestabilizam os mercados globais, afetam a segurança alimentar e causam insegurança e volatilidade de preços. Portanto, deve-se considerar que, no futuro, o estresse térmico nas culturas e na pecuária irá ocorrer em um ambiente de crescimento constante da procura de gêneros alimentícios, rações para animais e biocombustíveis, em todo o mundo, tornando os mercados ainda mais vulneráveis à acentuadas oscilações dos preços. Finalmente, deve-se considerar que preços altos e variáveis são mais prejudiciais para as famílias pobres, que gastam a maioria dos seus rendimentos em alimentos.  

Outra região em risco de temperaturas mais elevadas no futuro é o Sahel (Fig. 5), onde as culturas e a produção animal desempenham um papel essencial na economia, empregando cerca de 60% da população economicamente ativa e contribuindo com 40% do produto nacional bruto. O Sahel sofreu uma prolongada seca a partir de finais dos anos 1960 até o início de 1990, que fez despencar a produtividade das culturas e da pecuária, e que contribuiu para inúmeras mortes relacionadas com fome, além do acirramento das taxas de migração sem precedentes do norte o sul da região, e da área rural para a urbana ou para o litoral de países costeiros.

O estudo de Battisti e Naylor mostra que, para a região do Sahel a situação será mais grave, justamente por estar situada na faixa tropical do planeta. Neste caso, no final do século, a previsão é que a temperatura média durante o período de cultivo agrícola será superior aos valores extremos observados no século passado.

 

 

Estes exemplos ilustram os danos que já foram causados por ondas de calor forte e servem para alimentar os modelos de previsão dos danos que possam vir a ser causados no futuro. Se as temperaturas no final do século 21 efetivamente saltarem de patamar, e excederem as grandes ondas de calor do passado recente, a segurança alimentar global seria gravemente comprometida. As projeções dos modelos climáticos utilizados pelo IPCC em 2007 sugerem que este fenômeno é muito provável, e o estudo de Battisti e Naylor foi amplo, utilizando 23 diferentes modelos de previsão do comportamento do clima, e apontam para o aumento da temperatura durante o período de safra agrícola, com 90% de probabilidade de ocorrência. A figura 7 indica os locais do planeta onde, no período 2040-2060, são previstos verões mais quentes que qualquer registro anterior, enquanto a figura 8 mostra a mesma previsão para o período 2080-2100.

Quatro importantes conclusões podem ser tiradas a partir das projeções contidas no estudo de Battisti e Naylor:

1. Países tropicais têm sofrido menos variações extremas de temperatura, na comparação com o ano anterior, porém a tendência de aumento da temperatura média é superior aos países de clima temperado - portanto serão os primeiros a sofrer prejuízos na agricultura, por conta do aumento da temperatura. Entretanto, mesmo em países temperados, a tendência será de temperatura média mais alta – no mínimo equivalente aos recordes dos extremos observados até o momento – logo sua agricultura também será prejudicada.  

2. As previsões de temperatura média sazonal representam a mediana, e não os extremos da distribuição do clima e, portanto, devem ser consideradas como o novo padrão para o futuro. Com efeito, com probabilidade superior a 90%, até ao final do século XXI, a temperatura média do verão deverá exceder o mais quente registrado até o momento, nos trópicos e regiões subtropicais.

 
  3. Temperaturas que excedam o ano mais quente da série histórica, atingindo alguns países importantes do ponto de vista da produção agropecuária, tornarão o problema global, perdendo o caráter regional. Será extremamente difícil promover o equilíbrio de déficits alimentares em uma parte do mundo com excedentes alimentares em outro, a menos que grandes investimentos sejam feitos para adaptar-se à nova situação. Em especial, o desenvolvimento de variedades de plantas cultivadas tolerantes ao calor e ao estresse hídrico e sistemas de irrigação adequado para diversos agroecossistemas são altamente prioritários.   4. É fundamental mitigar o impacto das mudanças climáticas, reduzindo, drasticamente, a emissão de gases de efeito estufa. Apenas com a adoção de biocombustíveis (etanol, biodiesel e biogás) a Suécia logrou reduzir em 10% as suas emissões, o que representa o dobro do estabelecido pelo protocolo de Kyoto. Aí está a grande oportunidade da agenda brasileira para as discussões pós Kyoto.

 

 

Biodiesel from Brazil


Décio Luiz Gazzoni

 

 Este é o título do relatório apresentado ao Ministério da Agricultura da Holanda, pela Universidade de Wageningen. Ela foi contratada pela União Européia para estudar a viabilidade do fornecimento de biodiesel por países exportadores, a fim de atender a política pública regional (e de cada país membro), de substituição de energia fóssil por renovável. Em 2008, fomos convidados para os workshops de discussão, a fim de estabelecer a capacidade do Brasil atender as exigências da UE. Parte das informações contidas no relatório foram baseadas em nossas apresentações e argumentações e parte foi obtida através de outras fontes. O relatório pode ser encontrado na Biblioteca da Universidade de Wageningen para download por parte dos interessados (http://library.wur.nl/WebQuery/wurpubs/lang/373174).

  ulgamos interessante resumir o conteúdo do relatório, posto que a Europa será, seguramente, o grande consumidor de biodiesel nos próximos 15 anos, e sua capacidade de produção a partir de matéria prima local está se esgotando. Isto significa o surgimento de um mercado potencial interessante para o Brasil, desde que consigamos atender a todas as exigências que serão impostas pelos europeus.

            

            O relatório se divide em quatro capítulos:

I. É fornecida uma visão geral da demanda de biodiesel na Europa (e na Holanda, em particular), uma introdução às políticas de biodiesel no Brasil e o potencial produtor e exportador de biodiesel do Brasil;

II. São apresentados aspectos técnicos de especificação da produção de biodiesel e analisada a capacidade de o Brasil cumprir com as especificações da UE, agora e no futuro;

III. É analisada a sustentabilidade da produção de biodiesel fundada na soja como matéria prima, as mudanças de uso da terra, a emissão de gases de efeito estufa e os efeitos na biodiversidade;

IV. Apresenta-se um estudo de caso da produção de biodiesel a partir de óleo de dendê no Brasil.

 

Os números 

            A Tabela 1 mostra as estimativas de demanda de biodiesel na Europa, de acordo com as políticas públicas vigentes e o tamanho do mercado de petrodiesel atual e futuro.
 

  Tabela 1. Demanda estimada de biodiesel na União Européia de acordo com a atual política pública (5,75% de substituição em 2010) e a nova política (10% de substituição em 2020).

 

Ano

País

2010*

2020*

Holanda

0,68

1,35

Bélgica

0,50

0,94

Alemanha

3,76

7,04

Suécia

0,39

0,70

Reino Unido

2,51

4,70

União Européia (UE27)

19,00

36,20

* Em milhões de toneladas equivalentes de petróleo

    Do total da demanda projetada, os autores do estudo estimam que, já em 2010, haverá um déficit de biodiesel estimado entre 3,8 e 4,5 milhões de toneladas. Isto significa de 3 a 4 vezes o tamanho do mercado brasileiro, criado pela política pública brasileira. Verifica-se que este não é um mercado desprezível, considerando que todos os países potencialmente exportadores do mundo estão aproximadamente no mesmo estágio tecnológico. O grau de competitividade será conferido pela aderência dos países às exigências para exportação para a União Européia, como ser verá a seguir. Quem conquistar parcela ponderável do mercado europeu, estará muito bem posicionado para liderar o mercado internacional de biodiesel.

         

 

Um resumo do relatório

 

1. Introdução

A Diretiva de Biocombustíveis da União Européia (2003;30;EC) estabelece a meta de substituir 5,75% do combustível utilizado no transporte por biocombustíveis, em 2010. A proposta em análise da UE aponta para uma nova política que prevê a substituição de 10% dos combustíveis fósseis por biocombustíveis, até 2020.  Embora alguns países, como a Holanda e a Alemanha, tenham reduzido suas metas recentemente, ainda assim a previsão é de importação de altos volumes de óleo ou biodiesel, para cumprimento das metas. O Brasil demonstrou, com o programa de etanol, que possui capacidade de implementar programas competitivos de produção e uso de biocombustíveis, mesmo com redução de custo do petróleo, e deve ser considerado como um dos principais países supridores de biodiesel ou óleo, para a União Européia. Entretanto, como qualquer país exportador, o Brasil terá que cumprir as exigências de sustentabilidade e qualidade estabelecidas pela UE.

 2. Os critérios

Na UE, os objetivos primários do uso de biocombustíveis são aumentar a segurança do suprimento de energia para transporte e reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE). A experiência recente demonstra que ampliar o uso de bioenergia, ou biocombustíveis, não necessariamente implica que estes objetivos serão atingidos. Por este motivo, foram estabelecidos princípios e critérios de sustentabilidade dos biocombustíveis. Os critérios de Cramer, desenvolvidos na Holanda, apontam para metas de emissão de GEE, competição com culturas alimentares e outros produtos da agricultura, biodiversidade, meio ambiente, prosperidade, bem estar e saúde. A diretiva da UE para Energia Renovável estipula que quatro grandes grupos de critérios devem ser atendidos: a) emissões de GEE; b) uso da terra e estoque de carbono; c) biodiversidade; e d) impacto ambiental da produção agrícola. Uma análise de conformidade entre os regulamentos da UE e da OMC mostrou que as demandas com respeito às emissões são compatíveis, enquanto aquelas referentes à competição, bem estar e prosperidade econômica não se enquadram, ensejando necessidade de negociações e revisões. As demandas com respeito à biodiversidade, solo, ar e água devem ser objeto de estudos mais profundos. Outros temas, como mudanças indiretas no uso da terra, competição com outros produtos da agricultura não constam dos postulados da OMC.  

Os princípios estabelecidos por Cramer (Relatório final do projeto Produção Sustentável de Biomassa, 2007) são:

a.      O balanço dos gases de efeito estufa da cadeia produtiva do biodiesel devem ser positivos;

b.      A produção de biomassa para energia não deve ocorrer à custa de perdas de importantes sumidouros ou retentores de carbono, na vegetação ou no solo;

c.      A produção de biomassa para energia não deve colocar em risco o suprimento de alimentos, plantas medicinais, madeira, etc.

d.      A produção de biomassa para energia não deve afetar a biodiversidade protegida ou vulnerável, devendo, sempre que possível, melhorar as condições de preservação da biodiversidade;

e.      Na produção e processamento de biomassa o solo, e as suas características de qualidade, devem ser preservadas ou melhoradas;

f.        Na produção e processamento da biomassa energética, as águas superficiais ou subterrâneas não podem ser afetadas negativamente, e sua qualidade deve ser mantida ou melhorada;

g.      Na produção e processamento da biomassa energética, a qualidade do ar deve ser mantida ou melhorada;

h.      A produção de biomassa energética deve contribuir para a prosperidade dos locais de produção;

i.        A produção de biomassa energética deve contribuir para o bem estar social dos trabalhadores e da população local.

 

            A idéia corrente na UE é que estes princípios devem ser traduzidos em critérios que devam ser obedecidos pelos países que pretendam exportar biocombustíveis para o bloco.

 

                    

Critérios de qualidade

           

 O comércio internacional de biocombustíveis e de suas matérias primas depende do atendimento de especificações e critérios de qualidade. O estandar europeu para biodiesel (EM 14214) é reconhecido como o mais exigente do mundo. Entre outros aspectos, na prática apenas o metil éster de óleo de canola, de alta pureza, atenderia as especificações. Os óleos vegetais atualmente disponíveis em escala comercial no Brasil (em especial soja e sebo bovino) não conseguem atender a norma européia, embora misturas como de óleos de dendê e soja poderiam cumprir com as especificações.    Existe um grupo multilateral (do qual o Brasil faz parte) que busca uma especificação internacional, mais realística, a ser adotada como critério base para o comércio internacional, o que forçaria adaptações nas normas nacionais ou dos blocos, eliminando as barreiras técnicas atualmente presentes. Com isto seria possível tanto diversificar as fontes de matéria prima quanto os fornecedores. A ameaça específica para o biodiesel está nos biocombustíveis de segunda geração, especialmente aqueles derivados de material ligno-celulósico, que podem ser produzidos a mais baixo custo, e atendendo as especificações de qualidade e os critérios de sustentabilidade que venham a ser estabelecidos.

 

Impacto do cultivo

           

Do ponto de vista tecnológico, é possível obter um balanço de GEE positivo, ao longo da cadeia produtiva de biodiesel. Entretanto, o seu custo econômico não deve ser subestimado e pode representar um acréscimo de custo que afeta a competitividade das exportações. Há uma idéia vigente no Primeiro Mundo de que a expansão da área de produção de energia (oleaginosas e cana de açúcar) teria um efeito indireto na derrubada da floresta amazônica. Por esta teoria, a maior rentabilidade de produtos energéticos forçaria o deslocamento de culturas menos competitivas, até chegar à pecuária (menor rentabilidade líquida por hectare), o que forçaria a expansão de área de pastagens na Amazônia, com conseqüente derrubada de florestas. Embora seja uma tese altamente discutível e controversa, é necessário lembrar que, enquanto não investirmos em estudos que demonstrem, sem sombra de dúvidas, que a tese não se sustenta, este argumento continuará a ser esgrimido. Entre outros aspectos, porque, como uma das pilastras do uso de biocombustíveis é o seu apelo ecológico, não podem pairar dúvidas sobre a sua sustentabilidade neste quesito (...à mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta!).

  O uso apropriado da terra, incluindo o zoneamento agroecológico, as políticas públicas de proteção dos biomas sensíveis e, no caso particular do Brasil, a recuperação de áreas degradadas, devem ser o tripé da garantia de sustentabilidade da expansão da produção de biomassa para biodiesel. Sistemas associados, como a integração lavoura – pecuária, também fazem parte de um contexto de sustentabilidade produtiva. Outro aspecto crucial é a melhora da lotação pecuária no Brasil (atualmente de 0,93 cabeça/hectare). Uma melhora de 10% nesta lotação (que ainda continuaria ridiculamente baixa), liberaria 20 milhões de hectares para a agricultura, o que dever ser a demanda de crescimento de área agrícola na próxima década. Lembrando que os europeus não estão apenas preocupados com a Amazônia mas, recentemente, passaram a emitir alertas sobre o uso intensivo dos Cerrados.   Por outro lado, é necessário considerar que não será possível radicalizar o discurso, a ponto de implantar barreiras impeditivas ao processo agrícola, seja agricultura de energia, de alimentos ou o que quer que seja, pois o mundo continuará demandando produtos agrícolas em intensidade cada vez maior. O desafio que se antepõe à iniciativa privada e aos órgãos governamentais brasileiros é encontrar fórmulas de conciliação e negociá-las de forma a atender os nossos interesses.

            

 

    Conclusões

O texto de conclusões do relatório referenda que será impossível para a UE atender as metas de sua política pública de substituição de combustíveis fósseis por biocombustíveis, sem recorrer à importação. Reconhece que o Brasil possui excelentes condições para produzir matéria prima baseada em diferentes cultivos energéticos. Reconhece que o programa do etanol qualifica o Brasil como liderança mundial, com capacidade de atender desafios de suprir mercados exigentes como da UE, de forma competitiva e sustentável. Ressalta a necessidade de as importações de biodiesel serem lastreadas em critérios de sustentabilidade e qualidade, apontando para a rigidez da norma européia (EN 14214) que limita as matérias primas usadas para a produção de biodiesel e sugere a necessidade de atualização destas normas. Salienta que estes critérios de qualidade (especificação) interferem na sustentabilidade da cadeia produtiva, caso permaneçam vigentes as restrições a uma ampla gama de matérias primas. Finalmente, chama a atenção para o fato de que o advento de biocombustíveis de segunda geração, apropriados para uso em motores de ciclo diesel sem profundas modificações, imporá um teto limite para o mercado mundial de biodiesel, no longo prazo.

 

Biodiesel 2008/2017

Décio Luiz Gazzoni

A Empresa de Pesquisas Energéticas, vinculada ao Ministério das Minas e Energia, efetuou um estudo sobre a oferta e demanda de energia no período entre 2008 e 2017, o que inclui o biodiesel. O estudo avaliou a disponibilidade de insumos e a capacidade de processamento para atender as metas estabelecidas pela Lei nº 11.097/2005, além do auto-consumo do setor agropecuário. No bojo do estudo, foi elaborada uma projeção de preços de biodiesel, permitindo compará-los ao petrodiesel.

O estudo também contemplou a necessidade de infra-estrutura de escoamento para as regiões consumidoras, avaliando a capacidade de processamento das indústrias e o transporte do biocombustível das usinas até as bases das distribuidoras, assumindo que a sua distribuição utilizará o sistema já existente para o petrodiesel.

O estudo da EPE valeu-se do Zoneamento Agrícola de Riscos Climáticos do MAPA, ferramenta fundamental para a produção de matéria prima. Também considerou o aproveitamento dos co-produtos, pelo seu peso no custo de produção do biodiesel.

Perspectivas de Preços de Biodiesel

Para verificar a competitividade relativa do biodiesel em relação ao petrodiesel, de forma a atender as metas estabelecida pela Lei nº. 11.097/2005, o estudo projetou os preços do biodiesel, que foram denominados "preços mínimos". O seu cálculo considerou o preço da matéria prima, os custos industriais, a margem média de remuneração por distribuição e revenda, e os tributos incidentes. Os autores do estudo ressaltaram que a margem de remuneração do empreendedor não foi considerada, assim como o ICMS - para não dificultar a comparação com o diesel mineral, visto que cada estado pratica uma alíquota diferente.

 

  Em relação aos preços da matéria prima, foram utilizadas as projeções de preços no mercado mundial de óleos vegetais elaboradas pelo FAPRI (Food and Agricultural Policy Research Institute) para: soja, canola, girassol, dendê e amendoim. Para mamona e sebo bovino (valor extrapolado para as demais gorduras animais), foram utilizados os dados da UNIAMERICABRASIL, que comercializa estes produtos no mercado nacional. Para a mamona foram utilizados os valores fornecidos pela CONAB, de R$33,56 por saca de 60 kg, adicionados de R$0,02/L para esmagamento e degomagem. Considerou-se o óleo de fritura equivalente a 65% e a borra de ácido graxo como 20% do preço do óleo de soja, de acordo com o Informativo ABOISSA. A matéria graxa obtida de esgoto foi considerada como tendo custo zero.

 

  A metodologia do estudo converteu os preços da mamona, sebo bovino, óleo de fritura, borra e esgoto para manter a paridade com o óleo de soja para 2007, estabelecido pela FAPRI. A relação encontrada entre cada um destes insumos e o óleo de soja foi fixada para elaborar a projeção 2008-2017, de forma a manter-se constante no decorrer do período, ou seja, o preço do óleo de soja passou a ser um indexador das demais matérias primas. As densidades utilizadas para realizar a conversão dos dados massa/volume foram: 0,918 kg/L (óleo de soja, de canola, de girassol e de amendoim); 0,946 kg/L (óleo de dendê); 0,962 kg/L (óleo de mamona); 0,901 kg/L (sebo); 0,908 kg/L (borra) e 0,88 kg/L para o biodiesel. A taxa de câmbio foi fixada em R$1,96/US$1,00 para todo o período. A Tabela 1 apresenta a projeção de preços da matéria prima, ao longo do período abrangido pelo estudo.

 

Tabela 1 – Preços das matérias primas (US$/t)

Ano

Soja

Colza

Girassol

Dendê

Amendoim

Mamona

Sebo

Mamona

Fritura

Borra

Esgoto

2008

1.097,31

1.482,97

1.542,53

1.045,57

1.887,61

2.004,71

771,28

907,96

658,39

219,46

2009

1.127,20

1.280,73

1.423,65

1.003,69

1.829,45

2.059,32

792,29

932,69

676,32

225,44

2010

1.208,09

1.413,62

1.464,49

1.026,39

1.857,77

2.207,10

849,14

999,62

724,86

241,62

2011

1.284,00

1.459,46

1.507,69

1.056,97

1.878,07

2.345,78

902,50

1.062,43

770,40

256,80

2012

1.315,59

1.436,40

1.520,91

1.080,87

1.884,55

2.403,49

924,70

1.088,57

789,36

263,12

2013

1.337,47

1.467,18

1.548,42

1.110,49

1.888,87

2.443,47

940,08

1.106,68

802,48

267,49

2014

1.366,32

1.504,59

1.581,78

1.146,06

1.901,55

2.496,16

960,35

1.130,54

819,79

273,26

2015

1.395,84

1.543,47

1.618,85

1.185,26

1.916,37

2.550,10

981,10

1.154,97

837,50

279,17

2016

1.425,78

1.586,55

1.658,27

1.229,25

1.927,17

2.604,80

1.002,15

1.179,75

855,47

285,16

2017

1.466,30

1.642,45

1.701,34

1.275,48

1.946,56

2.678,83

1.030,63

1.213,28

879,78

293,26

Fonte: elaboração da EPE, a partir de dados da FAPRI, UNIAMERICABRASIL, CONAB e ABOISSA.

Para a conversão foram considerados os custos com álcool, catalisador, mão-de-obra, energia, aluguel, entre outros. De acordo com a Agência Internacional de Energia, estes custos representam 8-15% do custo de produção do biodiesel nas plantas de grande escala, e entre 25-40% nas plantas de pequena escala. Tomando por base o porte das usinas autorizadas e das que se encontram em processo de autorização pela ANP, o estudo considerou os custos de conversão como sendo de 20%. Foi assumido que os custos de conversão da borra de óleos vegetais são idênticos ao custo da matéria-prima. Quanto ao esgoto, por tratar-se de um processo cuja tecnologia ainda não está comercialmente consolidada, os custos de conversão foram estabelecidos em R$ 0,60 por litro.

 

Para a obtenção do ‘preço mínimo’ do biodiesel, além dos custos dos insumos graxos e dos custos de conversão, foram acrescentados os tributos PIS/PASEP e COFINS para o biodiesel, incidentes sobre todos os insumos, exceto mamona e dendê (considerados como agricultura familiar nas regiões Norte e Nordeste), além da margem por distribuição e revenda. As projeções de consumo, regionalização da demanda e preços de óleo diesel com base na série histórica, foram tomadas como fonte de referência.

  A previsão de preços de diesel refere-se ao preço ao produtor da região Sudeste. Para estimar os preços regionais, foram utilizados dados disponibilizados pela ANP (Relatório de Acompanhamento do Mercado). O estudo apresenta preços de óleo diesel por região geográfica, o que permite estimar, para cada uma destas, o incremento em relação ao preço do óleo diesel da região Sudeste. Pondera-se que este valor incremental esteja associado à diferença acarretada pelos custos de transporte do combustível fóssil. Desta forma, o óleo diesel mineral teve os preços considerados a partir da projeção do preço nacional, ao qual foram acrescidos os valores de PIS/COFINS e CIDE e a remuneração por distribuição e revenda. Para a obtenção do preço do diesel por região geográfica do país, ao preço nacional (dado em Paulínia – SP), adicionou-se o incremento regional.

 

 

Figura 1. Projeção de preços de diesel e preços mínimos de biodiesel 2008-2017

 

A Figura 1 mostra as estimativas de preços mínimos do biodiesel, produzidos a partir de diferentes matérias primas, comparado com o preço do óleo diesel, por região geográfica. Pelo exame da figura, verifica-se que somente o esgoto e a borra de ácidos graxos e, no primeiro ano, o óleo de fritura, são capazes de prover biodiesel mais barato que o óleo diesel. Entre os insumos cultivados, a mamona e o dendê são os que permitem preços mais próximos dos estimados para o diesel mineral, seguidos de longe pela soja – apesar de esta ser a matéria prima mais utilizada.   É relevante destacar que a competitividade do biodiesel com o óleo diesel também depende das incidências - e das desonerações - de tributos. Apesar do Selo Combustível Social para os insumos oriundos da agricultura familiar ampliar as desonerações fiscais concedidas pelo governo, os benefícios atendem a todos os insumos graxos para produção de biodiesel. Mesmo assim, as projeções sinalizam que todos os preços de biodiesel, independente da matéria prima, são muito superiores aos preços previstos para o óleo diesel. Como tal, conclui-se que os benefícios oferecidos ainda não foram suficientes para tornar o biodiesel competitivo com o óleo diesel.   É muito importante ressaltar que somente o preço de óleo diesel baseia-se no mercado energético, enquanto as matérias primas (óleos e gorduras), baseiam-se em mercados não-energéticos (alimentício, químico e farmacêutico). Desta forma, as projeções futuras podem vir a apresentar alterações decorrentes do aumento de produção voltado para este segmento. Como cerca de 80% dos custos de produção do biodiesel estão relacionados com a matéria prima, é imperativo considerar que os ganhos de produtividade agrícola repercutirão enormemente nos preços.

 

Uma receita financeira extra que pode ser considerada em um projeto de produção de biodiesel, além do percentual da mistura compulsória, seria obtida pelos créditos de carbono relacionados às emissões evitadas de gases de efeito estufa, reduzindo, desta forma, os custos de produção e melhorando a sua competitividade financeira face ao diesel mineral – para o que torna-se necessário mensurar a diferença entre as emissões decorrentes da queima destes combustíveis.   Levando-se em conta que a substituição de diesel por biodiesel permite, segundo evitar cerca de 2,6 kgCO2/L, e considerando o valor praticado no primeiro leilão do Brasil de créditos de carbono, que foi de €16,20/tCO2, é possível estimar que a incorporação desta receita possibilitaria a redução bastante significativa do preço do biodiesel em aproximadamente R$0,11/L.   Finalmente, da mesma forma que ocorreu com o álcool combustível no Brasil, o estudo alerta que é de se esperar uma curva de aprendizado para o biodiesel. A criação de um mercado consumidor de maior escala, bem como o desenvolvimento tecnológico agrícola e industrial provavelmente deverão conduzir a ganhos de escala e redução dos custos de produção. O reflexo desse aprendizado pode não ser perceptível no horizonte decenal do plano, mas poderá ser identificado no futuro como resultado do processo agora iniciado.

 

O Brasil e o mundo: uma relação de ódio e amor

 

Décio Luiz Gazzoni

 

 Continuo a crer, firmemente, que a agricultura de energia desempenhará um papel relevante nos próximos anos, sendo um componente que congregará proporção razoável do valor financeiro do agronegócio mundial. Entretanto, esta visão de longo prazo não obnubila o fato de que, no curto e no médio prazo deveremos enfrentar inúmeras discussões sobre a sustentabilidade da produção de biocombustíveis, sob as óticas ambiental, social e econômica.   Muitas das questões levantadas são (e serão) sérias e bem fundamentadas, merecem análise profunda e devem ser levadas em consideração. Entretanto, não podemos nos esquecer que o mundo tem uma relação esquizofrênica de amor e ódio com o Brasil. Amor porque o Brasil é um dos poucos países do mundo em condições de, no curto ou no longo prazo, atender parcela ponderável da demanda de produtos agrícolas. Ódio porque a nossa competitividade é de tal ordem que deslocamos concorrentes comerciais, que não aceitarão este fato passivamente, distorcendo fatos científicos a seu favor. E, quanto mais o Brasil se desenvolver, maior será a nossa ameaça ao status quo geo-politico e econômico e maiores serão as barreiras interpostas no caminho do nosso desenvolvimento.   As políticas públicas têm desempenhado um papel fundamental na condução de desenvolvimento de biocombustíveis, através de combinações de subsídios e mandatos, tendo como motes a segurança energética, o desenvolvimento rural e o apoio à agricultura. Apesar desta variedade de motivações, os países têm, em geral impulsionado os biocombustíveis apenas na medida em que proporcionam reduções palpáveis na emissão de gases de efeito estufa, obtendo benefícios ambientais e sociais incontestáveis. Os critérios para a expansão do uso de biocombustíveis incluem aspectos tão díspares como o resguardo da biodiversidade e os direitos dos povos indígenas – coincidentemente associados com países emergentes, especialmente países tropicais, como o Brasil.

 

               

 

 

 

Nos países emergentes, o desenvolvimento econômico e a segurança energética exercem um papel proeminente, sem descurar dos aspectos ambientais, em especial a redução nas emissões de gases de efeito estufa. Recentemente, uma questão fundamental levantada é a competição por área agrícola, que poderia ser destinada para outros produtos agrícolas ou para finalidades ambientais.   Independente das demais, obviamente, a principal limitação para produção de biocombustíveis é a disponibilidade de matéria prima, em especial a conjunção entre oferta de solos, água e clima. Para cada matéria prima existem necessidades específicas de solos, de água e de temperatura. Por exemplo, mesmo o pinhão manso, que é tido como uma matéria-prima que pode resistir à seca, apresenta baixos rendimentos de óleo em áreas de menor pluviosidade. Uma das melhores oportunidades para produção de biocombustíveis é a utilização mais intensa do potencial de culturas perenes, com adaptação natural ou introduzida a restrições climáticas, em especial com possibilidade de cultivo em solos marginais ou degradados, de pouco valor para a produção de alimentos.

 

 

 

Demanda de biocombustíveis e utilização direta ou indireta dos solos

 

Os biocombustíveis, potencialmente, representam uma elevada demanda adicional de terra arável, que se soma às demandas tradicionais da agricultura e da silvicultura. A área ocupada pela agropecuária no mundo é estimada pela FAO em 1,5 bilhão de hectares, 70% dos quais devotados à pecuária. Embora os estudos da FAO indiquem haver disponibilidade de área de terra arável para expansão equivalente à que está sendo cultivada, diversas restrições devem ser colocadas, como: a) as terras mais férteis, de topografia mais adequada e melhor localizadas já foram ocupadas; b) porção considerável da área de expansão é considerada arável apenas mediante irrigação; c) grande parte da área de expansão encontra-se na África, com severas restrições para sua incorporação ao sistema produtivo nos próximos 30 anos; d) a sociedade mundial pressiona por políticas ambientalistas cada vez mais rígidas, o que deve se intensificar em função dos impactos das Mudanças Climáticas Globais.

 

A preocupação manifestada em diversos foros é que a escassez de terras para incorporação, sem restrições agronômicas, conduza à disputa por terra entre alimentos e biocombustíveis. De outra parte, a fronteira agrícola das savanas, ou outras novas áreas que venham a ser incorporadas, podem gerar impactos ambientais negativos – o que é uma ironia, porque o principal motivo para a expansão de uso de biocombustíveis é, justamente, reduzir os impactos ambientais do uso de combustíveis fósseis.   Um raciocínio levantado é que, por exemplo, se áreas de savanas (no Brasil, os Cerrados) são convertidos para produção mais intensiva de bioenergia, a fim de suprir as necessidades locais, os efeitos indiretos sobre a utilização do solo poderia ser positivo, proporcionando mais energia por hectare e a redução da quantidade de terra necessária. Mas se essas savanas são convertidas para produção de biocombustíveis para exportação, as populações locais poderiam ser negativamente afetadas, porque a escala é muito maior e significaria avanços ponderáveis sobre estes recursos naturais.   Em qualquer avaliação deve-se considerar os usos existentes e potenciais da área agrícola e os efeitos indiretos da expansão. Por exemplo, uma tese muita controversa, mas que tem sido esgrimida à farta nos foros internacionais, é que a expansão da cana-de-açúcar no Brasil ocorreu empurrando as áreas de grãos em direção à fronteira agrícola, que, por sua vez, empurraram as áreas de pecuária para dentro da floresta, gerando desmatamento. No caso brasileiro, devido à nossa alta competitividade, sempre serão esgrimidos argumentos para nos criar barreiras comerciais, razão pela qual não basta dizer que não derrubamos a floresta para produzir biocombustíveis: é preciso demonstrar com políticas públicas, com atos e fatos comprováveis, que não estamos assim procedendo.

 

 

 

Gases de efeito de estufa

 

A expectativa ou exigência legal de que os biocombustíveis reduzam emissões de gases de estufa desempenha um papel importante nas políticas governamentais. Uma enormidade de estudos de análises de ciclo de vida, comparando diferentes biocombustíveis à gasolina e ao petrodiesel, têm impulsionado essa expectativa. Estas análises ganham credibilidade na medida em que são extensivas e inclusivas, incidindo particularmente sobre o uso de resíduos e produtos residuais da biomassa, sem desviar a capacidade produtiva da terra de seus usos tradicionais, de forma a gerar uma competição entre alimentos e biocombustíveis.  

 

Análises convencionais do ciclo de vida de biocombustíveis concluem que estes reduzem as emissões de gases de estufa, em comparação com a gasolina ou diesel. Porém, um estudo recente (Searchinger, T., R. Heimlich, R.A. Houghton, F. Dong, A. Elobeid, J. Fabiosa, S. Tokgoz, D. Hayes, T.H. Yu. 2008. Use of U.S. croplands for biofuels increases greenhouse gasses through emissions from land use change. Science 311: 1238-1240) apresenta um novo ponto de vista. De acordo com estes autores, estudos anteriores demonstraram que a o uso de biocombustíveis em substituição a combustíveis fósseis reduz a emissão de GEE vez que o gás carbônico emitido na queima é reabsorvido no ciclo seguinte de produção de matéria prima. Estas análises falhariam em considerar as emissões que ocorrem devido à expansão da produção de biocombustíveis, em resposta à elevação dos seus preços, tendo em vista a derrubada de matas ou outras áreas (como cerrados) para substituir a área de cultivo agrícola que foi substituída por cultivos energéticos. Usando um modelo agrícola global para estimar as emissões devidas à mudança de uso da terra, os autores afirmam que, especificamente com respeito ao etanol, ao invés de reduzir as emissões em 20%, haveria a duplicação das emissões em 30 anos, que continuariam a crescer por 167 anos. Mesmo a produção de etanol a partir de switchgras, caso a produção de matéria prima desloque o milho das áreas atuais, aumenta as emissões em 50%. Segundo os autores, os resultados obtidos questionam a validade de políticas públicas agressivas de substituição de combustíveis fósseis por biocombustíveis.

 

 

A pegadinha está no seguinte aspecto: após chamar a atenção para inúmeros problemas e malefícios, uma frase perdida no texto diz o seguinte: A extraordinária produtividade da cana-de-açúcar no Brasil necessita uma análise especial no futuro. Ou seja, tudo o que de ruim o artigo aponta, ocorre apenas quando a produção de biocombustíveis ocorre nos países frios do Hemisfério Norte. Entretanto, os argumentos contrários aos biocombustíveis são esgrimidos nos diferentes foros, sem a necessária ética, como se todos fossem culpados. E a cientistas como estes tem faltado a hombridade intelectual de ressaltar as diferenças, explicitamente diferenciando o que é bom do que é ruim, do ponto de vista ambiental, com o mesmo destaque, concluindo o que deve ser incentivado e o que deve ser repensado. Do ponto de vista do Brasil é importante que estejamos sempre atentos e informados, para não sermos surpreendidos durante negociações e discussões por estudos com claro part pris.   Apesar do exposto, é necessário concordar com os autores que o benefício ambiental dos biocombustíveis é mais facilmente alcançado através da utilização de resíduos, tais como resíduos urbanos ou industriais, ou de resíduos agrícolas e florestais, uma vez que, nestes casos não existe mudança do uso da terra.

Também é possível concordar com a teoria de que um ganho ambiental (emissão de GEE) é possível se a terra utilizada para produzir matéria prima era até então marginal pela perspectiva do ciclo de carbono, ou seja, sua destinação atual não sequestrava carbono nem produzia alimentos, embora possua um potencial de produzir significativas quantidades de biocombustíveis. O mesmo raciocínio se aplica a áreas atualmente destinada a produzir biocombustíveis, porém com uma baixa produtividade de energia por hectare, que possa ser significativamente melhorada, com ganhos positivos na emissão de GEE.

 

 

Biodiversidade

 

Do ponto de vista da biodiversidade, não apenas as áreas férteis são ricas em biodiversidade, o que torna ainda mais complexa a análise.  Por exemplo, duas grandes áreas de expansão potencial na América do Sul e África são savanas (cerrado no Brasil e miombo na África Austral) que, na condição natural, possuem níveis médios de cobertura de biomassa, mas que têm um alto valor para a biodiversidade.

 

Perdas crescentes de habitat pelas alterações climáticas é especialmente preocupante, principalmente em ecossistemas frágeis e fragmentadas, o que conduz à necessidade de uma abordagem prudente para proteger habitats valiosos, reduzindo a oferta de terra arável para expansão da produção agrícola.

  Degradação e perda do habitat, associada com alteração ou modificação do uso do solo é a principal causa de perda da biodiversidade mundial. Proteger a biodiversidade exige considerar outras alterações que ameacem os ecossistemas e, portanto, aumentar o valor de conservação de áreas que não estão atualmente ameaçadas. Muitas áreas sensíveis ao desmatamento não são protegidos, e muitos áreas "protegidas" poderiam tornar-se vulneráveis com a expansão da produção de biocombustíveis. Outra preocupação dos estudiosos é a redução da concentração de Nitrogênio nos solos, o que diminui a fertilidade e exige adubações nitrogenadas mais intensas, sendo o adubo nitrogenado produzido com alto gasto de energia, conseqüentemente com emissão de GEE.

 

 

  

Fatores sócio-econômicos

Enquanto em algumas regiões de países em desenvolvimento, vastas extensões de terra pode ser vistas como uma fronteira aberta, na maior parte do mundo rico, há uma longa história de ocupação de terras, levando ao esgotamento da fronteira agrícola. Em regiões com uma baixa densidade populacional, como a de pastagens naturais em África, o acesso à terra, é estreitamente regulada por instituições locais, mormente tribais. Sob este ponto de vista, independente de a terra ser propriedade privada ou comunal, não necessariamente estará disponível para uso agrícola, da forma como entende-se nas sociedades ocidentais. Mesmo as pastagens naturais de baixa produtividade desempenham um papel importante para o sustento dos pastores, embora não sendo usadas permanentemente. Por esta razão, o estoque de terras ainda por cultivar não pode ser tomado como definitivo, sem a análise de fatores antropológicos e culturais, para verificar a sua real disponibilidade.  

A viabilidade da produção em larga escala de biocombustíveis também depende da presença de infra-estrutura básica (estradas, armazenamento, acesso aos portos para exportação), a disponibilidade de uma força de trabalho qualificada, a prestação de serviços (muitas vezes associados a centros urbanos), de tecnologia comprovada, adaptada e sustentável, e de um sistema de governança que favoreça os investimentos privados. A falta de estabilidade política, que ainda é um atributo de vários países do Sub-Saara Africano, não é propício a investimentos que possam ter grande impacto no mercado, no médio prazo.

 

 

O sistema legal de alguns países impede a aquisição de terras por parte de empresas estrangeiras. Em outros países, existe um clima de incerteza devido a insegurança fundiária, por multiplicidade de posse da mesma área ou por invasões por grupos de sem terra, o que é desfavorável para investimentos agrícolas.

 

Do ponto de vista da produção em larga escala, é provável que as áreas adequadas para a produção de biocombustível estejam afastadas dos principais pontos de concentração de demanda de energia, exigindo assim transporte de longa distância com todos os seus custos econômicos e ambientais associados.

  Em contrapartida, do lado positivo, o desenvolvimento do setor produtivo de biocombustíveis significa um efeito multiplicador em outros setores da economia, através do mercado de insumos (trabalho, fertilizantes, máquinas, etc) e de uso da energia (transporte, transformação, fornecimento de energia, serviços, etc.). Pode-se antecipar que o investimento na produção de biocombustíveis desencadeará um círculo virtuoso,  como a implantação de modais de transporte (rede rodoviária, ferroviária, fluvial ou multimodal), aumentará as oportunidades de renda do trabalhador rural ou do restante da cadeia, aumentará a demanda por serviços e pode levar a economias de escala que beneficiem outras atividades agrícolas e não agrícolas do setor rural ou urbano. Sob esta ótica, um negócio portentoso de biocombustíveis poderia ser um catalisador para o desenvolvimento rural e regional, contribuindo para a solução de graves problemas sociais.

 

 

 

Conclusões

 

1.       A real disponibilidade de terra e o seu potencial de produtividade, a sua localização geográfica, o seu uso atual e as mudanças de uso da terra, são assuntos chaves no debate que podem induzir a expansão da produção e uso de biocombustíveis;

2.        Os debates mais sensíveis se concentração nas áreas tropicais, onde as novas plantações poderiam ser implantadas, onde os valores da biodiversidade são elevados, e onde grande parte da população é vulnerável a várias tensões culturais e antropológicas;

3.        Do ponto de vista ambiental, são poucas as áreas em que os biocombustíveis são uma opção inquestionável, postas as utilizações alternativas da terra;

4.        Assim mesmo, tanto na escala regional quanto local, existem diversas oportunidades para produção e uso de biocombustíveis, com benefícios líquidos para a sociedade, considerando a sua sustentabilidade ambiental, social ou econômica.

 

 

 

 

Biodiesel: crescer ou definhar

Décio Luiz Gazzoni

A menos que medidas radicais, ousadas e ambiciosas sejam tomadas de imediato, o uso relativo de biodiesel produzido a partir de óleos vegetais vai decrescer paulatinamente, na década que se inicia em 2020. Quer dizer que vamos voltar a consumir óleo diesel adoidadamente? Que vamos acelerar a exaustão das reservas de petróleo? Que vamos emporcalhar a atmosfera ainda mais? Que vamos matar ainda mais cidadãos, vítimas de problemas cardio-respiratórios decorrentes da emissão de particulados de veículos movidos a petrodiesel?  

Calma lá, gente. Eu não disse nada disto. Ao contrário, acho que os combustíveis fósseis, especialmente o petróleo, perderão market share a partir da década de 20. O problema está, especificamente, no biodiesel produzido de óleos vegetais (ou gorduras animais), ou mesmo de óleos vegetais para uso direto em motores diesel. Caso sirva de consolo, este será, também, o problema do etanol produzido de cereais - seja milho, trigo ou cevada - pois, em ambos os casos, a matéria prima (oleaginosas ou cereais) ficará progressivamente muito cara, impedindo a expansão do negócio em todo o seu potencial.

 

Lembremo-nos que o consumo de petróleo previsto para 2009 alcança 32 bilhões de barris, com valor estimado de 1,9 trilhão de dólares. Logo, é possível absorver o custo de B5 – eventualmente até B10 – através de políticas públicas (fiscais ou de subsídios) ou mesmo transferindo a conta para o consumidor. O problema está no B20, B30, B50... Teoricamente, um país como o Brasil, pelas suas vantagens comparativas, poderia até solucionar o seu problema. Mas, o Brasil representa apenas um dígito no consumo mundial de energia, e esta equação precisa ser resolvida de forma global, caso contrário haverá um leilão do biodiesel disponível em escala mundial e o consumidor (ou o Governo) brasileiro não conseguirão competir com a renda per cápita dos países ricos.

 

Vamos entender as razões pelas quais corremos este risco. No caso do etanol de cereais, o problema é facilmente compreensível: trata-se da conjuminação malévola entre a competição direta com a produção de alimentos e a ineficiência econômica, ambiental e energética de produzir etanol a partir destas matérias primas, que só se sustentam pelos subsídios e pela falta de conhecimento da opinião pública. Para o biodiesel, a análise é parecida, porém com outros desdobramentos. Em parte temos uma competição direta com alimentos (soja, canola, girassol). Esta questão poderia ser contornada produzindo óleo de espécies não édulas, como pinhão manso ou macaúba, porém a disputa por solo cultivado continuaria.   Entretanto, minha previsão é que o mercado de óleos vegetais continuará aquecido, com taxas de crescimento da demanda superiores ao crescimento do PIB mundial, pelos próximos 30 anos, sustentado pelas indústrias nutricional e de química fina. O mercado de energia será marginal na formação de preços de óleos e gorduras, pois trata-se de commoditie de baixo valor, comparativamente a alimentos, fármacos, cosméticos, próteses e outros produtos industriais.   Para complicar a questão, a maioria das matérias primas utilizadas para produzir biodiesel apresenta densidade energética muito baixa, produzindo entre 600 e 1.500 kg de óleo por hectare (entre 6 e 15 Mcal/ha), competindo com etanol de cana, que pode chegar a 120 Mcal/ha. O problema poderia ser parcialmente contornado com o uso de palmáceas tropicais, cujo paradigma é o dendê. Esta planta produz, hoje, 5 t/ha de óleo, com potencial para o dobro deste valor, podendo atingir mais de 100 Mcal/ha. Neste caso, a densidade energética seria alta o suficiente para conferir rentabilidade mercadológica, à margem de políticas públicas fiscais ou subsídios, ou mesmo da compulsoriedade de uso, que transfere o ônus para o consumidor.

 

Entrementes, ainda resta a questão de onde produzir quantidades astronômicas de óleo. O sudeste asiático (Malásia, Tailândia e Indonésia) está investindo fortemente na expansão do plantio de dendê. Porém, o seu limite físico de expansão será atingido até a década de 20. Países africanos ou latino-americanos, com clima adequado para produzir dendê, são poucos e com pouca área disponível para expansão, o que ocorre com Nigéria, Equador, Colômbia ou Costa Rica. Sobrará a grande fronteira da Amazônia brasileira, onde cerca de 30 milhões de hectares já desmatados poderiam ser utilizados (mesmo que parcialmente) para o plantio de dendê, em sistemas agro-florestais.   Aí vai depender do apetite empresarial, de o Governo brasileiro sair de sua inação e vislumbrar o tamanho da oportunidade econômica, ambiental e geo-política, de um marco legal adequado, e de as ONGs preferirem que as áreas desmatadas sejam replantadas, para evitar que mais área de floresta seja desmatada, a manter o modelo de agricultura itinerante atual – mesmo que a cobertura florestal seja feita com uma planta supostamente exótica (mas que aportou em Pindorama há 500 anos). Entretanto, mesmo neste caso, teríamos, no limite da área e da produtividade, 30 Mha produzindo 10 t/ha, redundando em 1,9 bilhão de barris/ano – ou seja, um B6 mundial, se a demanda global de petrodiesel não se incrementasse!

 

Mas só plantar oleaginosas não vai resolver, porque o preço do óleo vegetal, que é a matéria prima do biodiesel vai continuar aumentando. E, como vimos, a menor parcela da culpa pode ser atribuída ao biodiesel. A maior "culpada" é a inclusão social, promovida pelo grande aumento de renda per cápita de populações miseráveis, como no Sudeste Asiático e na África, que, com o consistente crescimento econômico do mundo (e destes países em particular) e a baixa inflação (o que restringe a concentração de renda e aumenta a renda disponível das famílias), estão podendo comprar mais alimentos – inclusive mais óleos e gorduras. Veja a evolução do preço dos óleos na figura abaixo.   Na mesma figura é possível observar que, com exceção de um momento pontual em 2005, em que o óleo de dendê apresentou cotação levemente inferior ao petróleo, o preço médio do complexo de óleos vegetais flutua entre 75 e 100% acima do preço do petróleo. Este é o espaço de equalização que precisa ser preenchido pelas políticas públicas (gravação tributária diferencial de petrodiesel/biodiesel, subsídios, etc.) ou transferência do custo para o consumidor.

 

 

Figura 1. Cotação dos óleos vegetais e do petróleo no mercado internacional.

 

 

Mas, se o mundo exige cada vez mais energia, se a tendência mundial de substituição de fontes fósseis por renováveis é um fato inexorável, o que ocupará o vácuo que vier a ser criado por uma demanda de biodiesel não atendida? Vislumbro quatro quebras de paradigma tecnológico.

A primeira delas ainda necessita de muito desenvolvimento tecnológico, mas eu acredito na Ciência e acho que resolveremos os óbices atuais. Falo da produção massal de algas, de alto teor de óleo, permitindo grande produção de biomassa, em curto espaço de tempo, reposicionando os fatores de formação de preços no mercado de óleos, no longo prazo, permitindo a redução do preço do biodiesel produzido.

 

A segunda tem a ver com o dueto matéria prima e processos de transformação. Já a partir da próxima década - porém com maior intensidade na década de 20 - a indústria de biocombustíveis vai migrar, parcialmente, para matérias primas genéricas de relativa abundância e baixo custo, tipo biomassa residual, óleos de fritura usados, cascas, grãos, lascas ou serragem de madeira, ou mesmo toras de madeira imprestáveis para outros usos, até o aproveitamento de gorduras de esgoto ou lixo orgânico urbano, associada com processos de pirólise ou gaseificação, para produzir bio-óleo ou gás de síntese. O bio óleo já é um sucedâneo do diesel. Com o gás de síntese, os químicos vão sintetizar novos biocombustíveis, adaptados para operar em motores de ciclo diesel, em regime de trabalho pesado.

A terceira inovação é semelhante à anterior, porém lastreada no avanço da biotecnologia. Já estão sendo testados na etapa pré industrial microrganismos transformados, como o Sacharomyces cerevisiae ou a Escherichia coli, com genes silenciados, super-expressados ou introduzidos que, a partir de mono, di ou polisacarídios (glicose, sacarose ou celulose), podem produzir inúmeros biocombustíveis, com propriedades físico-químicas, semelhantes ao petrodiesel.   A quarta inovação aponta para mudanças nos motores, de maneira a permitir o uso de bioetanol de cana, substituindo parcialmente o petrodiesel. Nem são mudanças muito profundas, trata-se de inovações tecnológicas que rompem com a forma como se havia tentado usar etanol em motores diesel até hoje, e que nunca "pegaram" por ineficiência ou alto custo. A Embrapa, em parceria com cientistas autônomos, detém uma patente nesta área que, tenho certeza, vai revolucionar o setor em escala mundial, criando algo parecido com um motor flex fuel a diesel.   Só não será flex fuel completo, porque sempre será necessária determinada proporção de diesel ou biodiesel (talvez até uns 40%), necessária para provocar a explosão dos combustíveis na câmara de combustão. Os testes preliminares mostraram economicidade e desempenho elevados, por vezes superando a operação com diesel puro. E, como bônus adicional, reduzindo dramaticamente as emissões, com formidáveis ganhos ambientais e de saúde pública. Lembrando, o etanol de cana é o biocombustível com mais alta densidade energética atual e futura e o de mais baixo custo, portanto reunindo as condições para ocupar o espaço com rentabilidade empresarial, dispensando políticas públicas de equalização de preços. É o futuro chegando, quando ultrapassarmos os limites do biodiesel, se este não atender a demanda mundial.

 

Nanocultivo de algas para extração de óleo

Décio Luiz Gazzoni 

 

Eu pertenço àquele grupo de pessoas que vislumbra grandes oportunidades futuras com o cultivo de algas, que tenha o objetivo de produção de biomassa para diferentes usos. Entre estas oportunidades está o seu aproveitamento para produção de energia, capitaneada pela extração de óleo para produção de biodiesel. A seu favor, o cultivo de algas tem a enorme capacidade de produção de óleo por unidade de área e unidade tempo.  

A alta produtividade pode redundar em baixo custo por unidade de energia, em capacidade de permitir alta produção sem competir com área destinada a alimentos, o balanço energético altamente favorável e uma baixa emissão de gases de efeito estufa por unidade de energia produzida. Ou seja, estaríamos muito próximos do conceito de um biocombustível ideal.

 

Entretanto, entendo que ainda existem inúmeros gargalos tecnológicos a serem vencidos para que possamos, efetivamente, tirar proveito do cultivo de algas, independente do uso a que se destine. No caso específico da produção de bioenergia, um dos desafios que vinham sendo antepostos para a obtenção de biodiesel de algas, era a dificuldade de extrair o óleo produzido pelas diferentes espécies de algas. Pela tecnologia atualmente disponível, é necessário colher e matar as algas para obter o óleo. Um dos problemas decorrentes desta tecnologia é o aumento do custo de produção, reduzindo a sua viabilidade comercial -  por vezes inviabilizando o empreendimento. 

Isto pode mudar. Encontra-se em desenvolvimento uma nova metodologia de obtenção de óleo de algas, envolvendo pesquisadores do Ames Laboratory (uma parceria entre o Departamento de Energia dos EUA e a Iowa State University) e da empresa Catilin, especializada em nanotecnologia e envolvida com o desenvolvimento de tecnologias de processamento de biocombustíveis. A idéia inovadora é uma tecnologia que permite extrair o óleo de algas sem a colheita tradicional, ou seja, a cultura de algas pode continuar produzindo. Pode parecer coisa de mágico, mas o conceito foi demonstrado nos estudos iniciais, conduzidos em laboratório.

 

 

 

A partir destes estudos básicos, que demonstraram a viabilidade tecnológica do conceito, foi firmado um acordo de desenvolvimento tecnológico para obtenção de um processo comercial de larga escala. O acordo objetiva reduzir o custo e o consumo de energia do processamento industrial de óleo de algas para produção de biodiesel. O prazo do projeto é de três anos e está sendo financiado com US$ 885.000 do Departamento de Energia, US$ 216.000 da Catilin e US$ 16.000 alocados pela Iowa State University. O que, convenhamos, é um preço barato por uma tecnologia revolucionária. 

O processo, que está sendo chamado de “nanofarming” utiliza nanopartículas para extrair o óleo de algas. A diferença fundamental é que este processo não prejudica o desenvolvimento das algas como outros métodos atualmente em uso, o que ajuda a reduzir tanto os custos de produção quanto a duração do ciclo de produção. Uma vez que o óleo é extraído das algas, um catalisador sólido desenvolvido pela Catilin será utilizado para produzir o biodiesel. Ou seja, a nova tecnologia combina catalisadores e nanotecnologia para superar o gargalo dos processos anteriores.

 

O cronograma do projeto prevê três fases distintas. A primeira fase é quase exclusivamente biológica e focará na seleção de espécies de microalgas e aprimoramento dos processos de cultivo. Obviamente, a seleção será dirigida para as algas produtoras de altos teores de óleo, e com perfil de ácidos graxos adequado.

A fase dois se concentrará no desenvolvimento de nanopartículas para remoção do óleo das células das altas e no desenvolvimento dos catalisadores heterogêneos mais apropriados. Finalmente, a última etapa tratará do escalonamento do processo, saindo de uma escala laboratorial para protótipos e, finalmente, para a fase pré-industrial, já em conexão com o mercado de biodiesel.

      O que atraiu os três parceiros foi o enorme potencial das algas para produzir óleo. De acordo com o Departamento de Energia americano, as espécies de microalgas que estão sendo estudadas podem produzir cerca de 40.000 litros de óleo por hectare. De posse deste número, foi impossível resistir à tentação de calcular quantos hectares de algas seriam necessários para produzir biodiesel suficiente para substituir todo o diesel consumido nos EUA. Aí cheguei ao número de 3,88 milhões de hectares, que é pouco superior à metade da área de cana do Brasil ou 14% da área de milho dos EUA. Pode parecer um absurdo ou ficção científica. Eu prefiro crer que é a porta de acesso a um novo paradigma de futuro para os biocombustíveis.

 

 

 

Catilin 

A Catilin Inc.(www.catilin.com) é uma empresa de base tecnológica que está investindo na pesquisa e desenvolvimento de tecnologias inovadoras para produção de biocombustíveis. Ainda recentemente, a Catilin divulgou o desenvolvimento de uma família de catalisadores heterogêneos que, segundo a empresa, permitem produzir biodiesel de mais alta qualidade e com custo mais reduzido. Ainda de acordo com a empresa, o seu processo permite reduzir algumas etapas do processamento, o que também reduz riscos ambientais e de perda de qualidade do produto final – biodiesel – e do co-produto, a glicerina. 

Para quem estiver interessado em detalhes técnicos ou comerciais do processo, seguem os contatos: 

Victor Lin, Ames Laboratory Chemical and Biological Sciences, 001 515-294-3135
Pamela Mahoney, Catilin, 001 650-854-7236
Kerry Gibson, Ames Laboratory Public Affairs, 001 515-294-1405

 

 

 

 

A multifacetada sustentabilidade dos biocombustíveis

 

Décio Luiz Gazzoni

 

As políticas públicas têm desempenhado um papel fundamental no desenvolvimento do mercado de biocombustíveis, através de combinações de subsídios e mandatos, tendo como motes a segurança energética, o desenvolvimento rural e o apoio à agricultura. Apesar desta variedade de motivações, os países têm, em geral impulsionado os biocombustíveis apenas na medida em que proporcionam reduções palpáveis na emissão de gases de efeito estufa, obtendo benefícios ambientais e sociais. Os critérios para a expansão do uso de biocombustíveis incluem aspectos tão díspares como o resguardo da biodiversidade e os direitos dos povos indígenas, conforme as discussões que acompanhamos em foros diversos, mundo afora.

 

Nos países emergentes, o desenvolvimento econômico e a segurança energética exercem um papel proeminente, sem descurar dos aspectos ambientais, em especial a redução nas emissões de gases de efeito estufa. Lembremo-nos que, ainda recentemente, uma questão fundamental levantada foi a competição por área agrícola, que poderia ser destinada para produção de outros produtos agrícolas ou para finalidades ambientais. Esta discussão está morna, porém não se encerrou.

 

Quaisquer que sejam as outras, obviamente, a principal limitação para produção de biocombustíveis é a disponibilidade de matéria prima, em especial a conjunção entre oferta de solos, água e clima para sua produção. Por exemplo, a Jatropha é tida como uma matéria-prima que pode resistir à seca, mas os rendimentos de óleo têm sido baixos em áreas de menor pluviosidade. Para cada matéria prima, existem necessidades específicas de solos, de água e de temperatura. Uma das melhores oportunidades para produção de biocombustíveis é a utilização mais intensa do potencial de culturas perenes, com adaptação a restrições climáticas e aos solos degradados, de pouco valor para a produção de alimentos ou floresta. Com isso fica possível reduzir o espaço de sobreposição entre a produção de alimentos e de energia.

 

Com a aproximação da reunião de Copenhagen, prevista para dezembro, acirra-se a discussão sobre critérios ambientais e sociais aceitáveis para a produção de biocombustíveis. Procurei pinçar algumas das discussões que tenho presenciado, para trazê-las para o nosso fórum no BiodieselBr.

 

 

 

 

Efeitos diretos e indiretos da utilização dos solos

 

Os biocombustíveis representam uma demanda adicional de terras que se junta à tradicional demanda da agricultura e da silvicultura. Em face da escassez de área, questiona-se a utilização das terras para produção de biocombustíveis, podendo conduzir à expansão da agricultura em áreas de savanas, que já seriam, de qualquer forma, duramente pressionadas para atender às demandas tradicionais. Um detalhe interessante da discussão, nos meios acadêmicos, é que, se as savanas forem usadas para produzir energia para uso doméstico – e com alta eficiência energética – o fato é moralmente aceitável. Neste caso, condena-se a produção de biocombustíveis para exportação, o que é, no mínimo,  um argumento “perneta”. Dever-se-ia, sim, buscar a vocação de cada região e de cada área, e não ficar no argumento parcial do conflito – agora doméstico – entre produção de alimentos e de energia.

 

 

Gases com efeito de estufa

 

A expectativa ou exigência legal de que os biocombustíveis reduzam emissões de gases de efeito estufa tem desempenhado um papel importante nas políticas governamentais. Existe uma verdadeira corrida para elaboração de análises de ciclo de vida, comparando diferentes biocombustíveis à gasolina e ao diesel, o que têm mantido acesa a discussão sobre essa expectativa. Com frequencia, estas análises buscam avaliar resíduos e produtos residuais para produção de biocombustíveis, pois trata-se de biomassa que não requer a expansão de área agrícola para sua obtenção.  

As análises convencionais de ciclo de vida de biocombustíveis demonstram que este fato é verdadeiro, ou seja, as emissões provenientes da produção de biocombustível e de seu consumo em um veículo tendem a ser maiores para os biocombustíveis à base de vegetais do que os produzidos a partir de resíduos. É necessário entender um detalhe desta questão: no conjunto, as emissões tendem a ser muito parecidas; entretanto, como os resíduos emitiriam os mesmos gases em sua decomposição natural, e não teriam outro uso econômico, o cômputo leva este pormenor em consideração, o que significa uma diferença razoável no balanço final.

 

 

 

 

De toda a maneira, em qualquer caso, as análises mostram que os biocombustíveis diminuem as emissões globais porque se atribui um crédito para o carbono retirado da atmosfera pelas plantas, posteriormente à queima do biocombustível nos motores. Ou seja, a grande diferença é o ciclo fechado de carbono dos biocombustíveis. Acontece que, nas análises também se leva em consideração o uso alternativo das terras. Neste caso, a absorção de carbono também ocorreria na produção de outros produtos agropecuários, não exclusivamente pela produção de biocombustíveis. Este detalhe passa a ser muito importante, quando nos aproximamos da reunião de Copenhagen pois, desta vez, os países estão muito mais propensos a considerar o seqüestro e a fixação de carbono nas florestas, que nas reuniões de Kyoto, cujo foco acabou sendo a energia. Portanto, existe um risco no horizonte, a partir deste tipo de análise, que pode levar á fragilização do apoio para os programas de redução de emissões baseados em biocombustíveis.

  Uma derivada desta análise será recorrente, pois volta-se ao capítulo anterior do uso direto e indireto da terra. Ou seja, mesmo que a matéria prima para biocombustíveis seja produzida sem a derrubada de florestas, porém, se deslocar outras culturas e criações e obrigar a que isto ocorra de forma indireta, a conta será pendurada nos biocombustíveis. Outro argumento marginal, porém esgrimido com freqüência, é o maior uso de insumos como fertilizantes e agrotóxicos, para aumentar a produção de alimentos quando diminui a área disponível (tomada pela agricultura de energia), para manter a oferta compatível com a demanda. Também é levantado o argumento de uso de várzeas ou irrigação, aumentando o consumo de energia. Isto implicaria, novamente, em maiores emissões, fechando o ciclo com a discussão sobre o uso de resíduos para produzir biocombustíveis.

 

 

 

Biodiversidade

 

Além das áreas muito férteis do Hemisfério Norte (Meio Oeste americano, Rússia, Ucrânia), duas grandes áreas de expansão potencial na América do Sul e na África são ocupadas por savanas (cerrados no Brasil e Miombo na África Austral). Estas áreas, originalmente, apresentam níveis médios de biomassa nativa, mas têm um alto valor da biodiversidade.   Mudança de habitat e degradação são associadas com alteração ou modificação do solo pelas atividades humanas, sendo a principal causa de perda da biodiversidade mundial. Proteger a biodiversidade exige também considerar outras alterações que ameacem os ecossistemas. Este raciocínio conduz ao aumento da importância de conservação de áreas que não estão, atualmente, ameaçadas. Muitas áreas sensíveis ao desmatamento não são protegidas, e muitos áreas protegidas podem tornar-se vulneráveis, pela mudança de habitat

 

 

Há outros fatores. O enriquecimento cada vez maior de nitrogênio atmosférico vem sendo considerado um importante fator para a perda de espécies vegetais de ecossistemas terrestres temperados. Já os efeitos da deposição de N em sistemas agrícolas tropicais (originalmente cobertos florestas e savanas), são menos estudadas, mas os dados disponíveis indicam que este fenômeno também diminui riqueza em espécies.

  A invasão de ecossistemas naturais por plantas exóticas, vem sendo analisado para aquilatar sua importância na mudança ambiental global, consequentemente em seu impacto para a biodiversidade. A combinação de perdas crescentes de habitat e as alterações climáticas, é especialmente preocupante. Os cientistas buscam estabelecer o nexo de alterações climáticas antropogênicas, que podem resultar em grande perda de biodiversidade em todo o mundo, com dramáticas alterações na distribuição e extinção de espécies, principalmente em ecossistemas frágeis e fragmentadas. Entenda-se todo este contexto como um libelo contra a agricultura como um todo, porém, sem dúvida, as baterias estarão particularmente assestadas na produção de biocombustíveis.

 

 

 

Fatores sócio-econômicos

 

Quando se busca assegurar benefícios socioeconômicos, provoca-se uma série de perguntas adicionais à respeito do uso da terra. Enquanto em algumas regiões do Hemisfério Sul, vastas extensões de terra podem ser vistas como uma fronteira aberta, na maior parte do mundo desenvolvido, há uma longa história de ocupação de terras, praticamente esgotando a fronteira agrícola.

  Apenas aparentemente, pois a questão é mais complexa. Mesmo em regiões com uma baixa densidade populacional, como a de pastagens naturais em África, o acesso à terra, é regulado por instituições locais, inclusive tribais. Nestes locais, não importa se propriedade privada ou comunal, a terra que parece não ser utilizada não é necessariamente disponível para expandir a fronteira agrícola. Neste caso, temos que considerar fatores culturais e históricos. Um argumento que para nós aparenta ser ridículo, tem muito valor nestes locais. Por exemplo, a baixa produtividade de pastagens naturais na África, desempenha um papel crucial para o sustento dos pastores pois, embora levando ao nomadismo, garantem o seu sustento e de suas famílias.   A viabilidade da produção de biocombustíveis em larga escala também depende da presença de infra-estrutura básica (estradas, armazenamento, acesso aos portos para exportação), a disponibilidade de uma força de trabalho qualificada, a prestação de serviços (muitas vezes associados a centros urbanos), e um sistema de governança que favorece os investimentos privados. A falta de estabilidade política, que ainda é um atributo de vários países do Sub-Saara Africano, não é propício para investimentos agrícolas de larga escala.

 

 

 

Em alguns países, o sistema legal impede a aquisição de terras por parte de empresas estrangeiras. Em outros países, diferentes grupos peleiam para definir a real propriedade da terra, o que cria um clima de incerteza que é desfavorável para investimentos agrícolas. Pelo esgotamento da fronteira agrícola dos países ricos, as áreas adequadas para a produção de biocombustíveis deverão estar localizadas longe dos principais centros de consumo de energia, exigindo, assim, transporte de longa distância com todos os seus custos econômicos e ambientais associados. Seguramente, isto também entrará na discussão em Copenhagen, pois o cumprimento de metas ambiciosas de substituição de combustível fóssil dependerá de um mercado internacional de biocombustíveis muito forte.

  Entretanto, há que se potencializar o aspecto positivo, pois o desenvolvimento do setor produtivo de biocombustíveis terá um efeito multiplicador em outros setores da economia, desde o mercado de insumos, serviços terceirizados, máquinas até o transporte, atransformação, ofornecimento de energia e de outros serviços, como crédito, seguros, etc.   O investimento em biocombustíveis irá criar uma rede de transportes, aumentará a renda do trabalhador rural e de serviços, e pode levar a economias de escala que beneficiem outras atividades agrícolas e não agrícolas do setor rural. E, portanto, poderia ser um catalisador para o desenvolvimento rural, o que pode contrarrestar muitos dos argumentos expostos acima.

 

 

 

 

Biomassa energética e a poluição do ar

Décio Luiz Gazzoni

 

1. Introdução

Continuando a série de análises sobre impactos ambientais dos biocombustíveis, vamos analisar o impacto de biomassa energética, na qualidade do ar, ao longo do ciclo de vida. Esta análise restringe-se aos impactos sobre a qualidade do ar atmosférico e, em particular, aqueles com potencial de afetar a saúde humana e o ambiente. Efeitos mais amplos, como a redução do ozônio estratosférico ou as mudanças climáticas globais não cabem nesta análise. Considero o tema de extrema importância pois, embora biocombustíveis tenham impactos ambientais, o tema precisa ser convenientemente elucidado, dimensionado e, em especial, comparando o impacto ambiental dos biocombustíveis com fontes fósseis de energia.   Dois conceitos básicos: a) O ciclo de vida dos biocombustíveis abrange desde o preparo de solo para o cultivo da matéria prima até o seu uso final, considerando que, em qualquer ponto da cadeia de produção, pode haver emissões de poluentes que afetem a qualidade do ar. b) Entende-se como poluentes as substâncias químicas liberadas ao longo da cadeia, que não constituem objetivo finalístico da produção de biocombustíveis, e que possam afetar a saúde pública ou o ambiente. Os poluentes sofrem uma série de reações químicas complexas assim que são emitidos na atmosfera. Estas reações dependem do ambiente em que são emitidos, podendo diferir de uma cidade para um ambiente rural.   Os poluentes atmosféricos liberados durante a produção e utilização de biocombustíveis têm, geralmente, tempo de vida relativamente curto, e não são transportados a longas distâncias. O seu impacto é limitado principalmente ao plano local (cerca de 10 km) ou a escalas regionais (ordem de 100-1000 km). Em contraste com as emissões de gases de efeito estufa (GEE), os impactos dos poluentes atmosféricos tendem a ser de natureza regional. Como resultado, em teoria, as plantas de biocombustíveis localizadas próximas às cidades são susceptíveis de gerarem impactos mais acentuados na saúde pública do que aquelas localizadas em áreas rurais.

 

 

2. Principais poluentes atmosféricos

O impacto da poluição do ar é mais facilmente compreendido através da análise individual das fontes de emissão, dos poluentes e de seus impactos. Comentaremos, em particular, os cinco poluentes emitidos por combustíveis, enumerados pela Environmental Protection Agency (EPA): material particulado, dióxido de enxofre, óxidos de nitrogênio, monóxido de carbono e ozônio. Adicionalmente, vamos comentar os carbonos orgânicos voláteis (um importante precursor de ozônio) e outros perigosos poluentes atmosféricos. O foco da análise é o impacto na saúde humana ou os impactos ambientais.

 

a. Material particulado (PM)

Os materiais particulados atmosféricos, também conhecidos como aerosóis, constituem uma mistura de partículas sólidas e líquidas, na forma de gotículas muito pequenas. Os particulados são designados partículas inaláveis (tamanho inferior a 10 micra - PM10), ou partículas finas (medindo menos de 2,5 micra - PM 2,5). Considera-se o grupo PM10 como emissão primária, ou seja, diretamente emitida em forma de partículas, enquanto o grupo PM2,5 pode ser primário ou secundário, isto é, formado através de reações químicas na atmosfera.   A menor dimensão das partículas de PM2,5 significa que podem ser transportados a longas distâncias, além de possuir um potencial de impacto maior na saúde, por penetrar profundamente nos pulmões. Além de serem formadas diretamente na câmara de combustão, este grupo é gerado por reações químicas de emissões gasosas (especialmente NOx, SO2 e Compostos Voláteis Orgânicos - CVOs). Os efeitos sobre a saúde respiratória da exposição a PM2,5 incluem diminuição da função pulmonar, insuficiência cardíaca, o aparecimento de asma, o desenvolvimento de bronquite crônica, ataques cardíacos e, eventualmente, a morte prematura em pessoas com quadro anterior de doença cardíaca ou pulmonar.

 

b. Monóxido de Carbono (CO)

 

O CO é um gás incolor, inodoro, liberado pela combustão incompleta de materiais orgânicos, como os combustíveis fósseis, os biocombustíveis, ou qualquer biomassa. O envenenamento por CO afeta o sistema nervoso central e é particularmente perigoso para as pessoas com doenças cardíacas. Através de uma série de reações químicas, as emissões de CO podem resultar na produção de ozônio. No entanto, o CO não é muito reativo e pode ser transportada para longe de sua fonte de emissão, antes que reaja na atmosfera. Por isso, a produção de ozônio pode ocorrer distante da fonte de emissão e em altas altitudes. No sangue ele possui um efeito muito perigoso quando forma um complexo estável com a hemoglobina: se aproximadamente 2% dela estiver ligada ao CO, a atividade normal da pessoa fica debilitada. Se esse percentual estiver entre 10 e 20% pode causar a morte do indivíduo. O complexo formado impede o transporte de oxigênio pelo corpo, levando, inicialmente, à inconsciência e depois à morte.

 

c. Óxidos de nitrogênio (NO e NO2, conhecidos coletivamente como NOx).

O grupo genérico conhecido como NOx desempenha um importante papel como precursor na formação de ozônio troposférico, de material particulado e de chuva ácida. Esta última ocorre através da formação de ácido nítrico na atmosfera, carregado de volta à superfície através de precipitações pluviométricas. As fontes antropogênicas de NOx incluem todos os processos de combustão, como os combustíveis fósseis, os biocombustíveis, os resíduos agrícolas e, em menor medida, a utilização de fertilizantes e posterior atividade biogênica no solo. Embora o impacto imediato de emissões de NOx ocorre, geralmente, nos locais de emissão, os produtos formados a partir de NOx podem ser transportados a longas distâncias, onde causam os impactos adversos. O NO é um gás praticamente inofensivo e puro, não representa graves perigos à saúde. O NO2 é um gás de cor castanho-avermelhado, de odor característico tóxico e muito irritante. Uma pessoa que aspire este gás sente imediatamente ardência nos olhos, no nariz e nas mucosas em geral.

 

d. Compostos Orgânicos Voláteis (COV).

Este grupo compreende uma vasta gama de hidrocarbonetos não metânicos, de origem antropogênica e de fontes naturais, contribuindo para a formação de ozônio e de PM2,5. Os COVs antropogênicos são emitidos a partir de uma variedade de fontes, particularmente a queima de combustíveis fósseis e gasolina evaporada. Embora os COVs sejam precursores de ozônio, em certas circunstâncias eles reagem com o O3, reduzindo a sua concentração. Em particular, as emissões dos veículos a etanol pode ser rica em formas particulares de COV,que têm importantes efeitos sobre a saúde. Devido à diversidade dos COVs, não há como relatar efeitos particulares sobre a saúde humana.

 

e. Ozônio (O3).

O ozônio não é emitido diretamente, sendo formado na atmosfera através de reações químicas envolvendo NOx, CO e COVs, na presença de luz solar. A relação entre a produção fotoquímica do ozônio e as emissões de seus precursores não é linear, de maneira que a formação do ozônio é muito dependente de quais poluentes primários são emitidos. Este comportamento não-linear torna difícil fazer uma estimativa a partir de simples avaliações de emissões de NOx ou de COV. Normalmente, uma avaliação do impacto do ozônio requer modelos matemáticos que incluem a concentração dos diferentes produtos químicos e o comportamento dos processos meteorológicos conducentes à formação de ozônio. O ozônio representa uma grande preocupação para a saúde humana, por causar ou agravar problemas respiratórios, está associada a degradação florestal e agrícola, e a redução de sua concentração pode implicar na maior penetração de raios UV na atmosfera.

 

f. Óxidos de enxofre (SOx).

O enxofre está presente em diferentes concentrações no carvão e no petróleo, em grande parte liberada sob a forma de SO2 no refino e na combustão. Nos biocombustíveis a concentração de enxofre é muito baixa ou ausente. Assim como os NOx e o PM, o SOx contribui para a formação da chuva ácida, embora não contribuam diretamente para a formação ou destruição do O3. O principal efeito sobre a saúde é no aparelho respiratório: o SO2 causa irritação e aumenta a resistência do canal respiratório, principalmente em pessoas asmáticas e com deficiência respiratória, além de secreções da mucosa nasal. O SO2 quando é convertido em ácido sulfúrico provoca a chuva ácida que pode destruir as plantas. Os danos causados são pequenas manchas sobre as folha, exatamente onde tocam as gotículas.

 

g. Poluentes atmosféricos perigosos (HAPS).

Estas substâncias compreendem uma ampla gama de produtos químicos, que podem causar câncer, danos ao sistema imunológico, problemas neurológicos, efeitos negativos sobre o sistema reprodutivo, defeitos congênitos, e outros problemas graves de saúde, além de impactos ambientais adversos. Enquanto alguns tóxicos do ar são emitidos naturalmente (por exemplo, a partir de erupções vulcânicas e incêndios florestais), a maioria resulta de atividades humanas como a queima de combustíveis fósseis e a produção e utilização de produtos químicos.

 

3. Fontes emissoras

 

a. Biocombustíveis sólidos

A utilização dos biocombustíveis sólidos para o aquecimento e para cozinhar tem uma longa história, em grande parte do mundo em desenvolvimento. Embora seu uso esteja se reduzindo nos países centrais, madeira, carvão, esterco, resíduos agrícolas e outras biomassas sólidas continuam a ser importantes fontes de combustível doméstico para as zonas rurais da África, Ásia e América Latina. A biomassa e os resíduos agrícolas e florestais representam mais de 60% do consumo de energia primária na África Sub-Sahariana, cerca de 25% na região da Ásia-Pacífico, e cerca de 15% na América Latina e no Caribe. 

Nestas áreas, as emissões de poluentes de biocombustíveis sólidos são maiores que aquelas relacionadas com a indústria e os transportes, e os impactos tendem a ser altamente localizados, comparativamente aos dos biocombustíveis líquidos. A queima de biocombustíveis sólidos é uma importante fonte de carbono orgânico primário e de aerossóis, e também podem emitir quantidades significativas de precursores de O3. Além disso, o uso de biocombustíveis sólidos é uma grande preocupação em relação à qualidade do ar interior, devido aos elevados riscos resultantes da queima de biomassa para cozinhar e para aquecimento.

 

Os impactos na saúde incluem as infecções respiratórias agudas inferiores, especialmente em crianças, doença pulmonar obstrutiva crônica e bronquite crônica. A Organização Mundial da Saúde estima que a poluição do ar interior é responsável por 3,7% das doenças de alta mortalidade em países em desenvolvimento e contribui significativamente para as infecções respiratórias agudas - a principal causa de morte entre crianças menores de 5 anos.

Dentro deste quadro geral existem exceções. Por exemplo, o bagaço de cana é utilizado para co-geração de eletricidade em plantas de etanol, com grande controle sobre as emissões de poluentes, fazendo com que, nas instalações industriais modernas, as emissões dos biocombustíveis sólidos sejam muito reduzidas em relação aos encontrados em práticas tradicionais.

 

 b. Biocombustíveis líquidos

 

O ciclo de vida dos biocombustíveis líquidos é longo e inclui desde a conversão de uso da terra, o cultivo de matéria prima, o transporte para as usinas, o processo industrial de transformação, o transporte do combustível para o mercado e, finalmente, a combustão nos veículos. Dado que os biocombustíveis são produzidos a partir de diferentes culturas, usando diferentes práticas agrícolas, com fatores de produção diferenciados, transformados em diferentes combustíveis, a quantidade e os impactos das emissões atmosféricas pode variar muito de região para região, e de acordo com a cultura e o tipo de biocombustível.   Além disso, as diferentes condições de operação – por exemplo, veículos que utilizam gasolina e diferentes proporções de bicombustível - devem ser consideradas para uma avaliação do ciclo de vida. Com respeito às emissões, quatro grandes grupos de considerações devem ser efetuados: a) a mudança de uso da terra deve incluir tanto a mudança de cultivo como a derrubada de vegetação nativa para produção de matéria prima para produzir biocombustíveis; b) as emissões relacionadas com o processo agrícola, transporte da biomassa, refino e transporte para  distribuição de biocombustíveis; c) as emissões associadas com a combustão dos biocombustíveis; d) as emissões globais indicando o efeito líquido ao longo de todo o ciclo de vida, descontando as reabsorções e seqüestros de emissões.

 

4. Conclusões

 

 

  1.  Por uma série de razões, as emissões de poluentes atmosféricos durante o ciclo de vida de etanol e biodiesel é consideravelmente diferente das emissões de GEE. Por um lado, na contabilização de emissões de GEE, um crédito deve ser aplicado devido ao seqüestro de carbono pela matéria prima, o que não se aplica às emissões de poluentes. Em segundo lugar, os impactos dos poluentes atmosféricos devem ser examinados em escalas espaciais menores que aquelas utilizadas em avaliações de GEE pois, devido à sua curta vida útil, os poluentes não são transportados globalmente e a química atmosférica difere nas escalas local e regional. 

  2.  Assim, embora as emissões dos biocombustíveis possam ocasionar aumento da concentração de O3, em um local, elas poderiam ter o efeito oposto em outro local. Isto implica que a simples contabilização do ciclo de vida das emissões de poluentes, não é suficiente para caracterizar, adequadamente, o impacto dos biocombustíveis sobre a qualidade do ar. Assim, enquanto a contabilização das emissões é um primeiro e necessário passo, não é suficiente para dimensionar o impacto dos poluentes sobre o ar.

  3.  Exceto no caso de misturas pobres de etanol de milho na gasolina, os estudiosos têm convergido no fato de que o etanol de milho degrada a qualidade do ar através das suas emissões. Este fato se baseia, principalmente, nos estudos que demonstram que a produção de etanol de milho requer mais energia do que a produção de derivados de petróleo. 

  4.  Igualmente, é necessário considerar que a energia necessária para produzir etanol celulósico é maior do que para o milho. A queima de combustíveis para produzir essa energia tem um impacto substancial sobre as emissões de poluentes atmosféricos. Nos estudos que revisamos, a produção de biocombustíveis a partir de celulose e hemi-celulose tendem a aumentar as emissões de poluentes ao longo do ciclo de vida, mesmo em relação à gasolina, com exceção do enxofre e do material particulado. 

  5.  A qualidade do ar é fortemente impactada pela queima da palhada de cana-de-açúcar. Entretanto, este é um fator que deverá desaparecer no médio prazo, em parte devido às imposições legais, porém também impulsionado pelos ganhos econômicos da colheita mecânica e do aproveitamento energético da palhada. 

  6.  Em relação ao biodiesel, um aspecto que se observa em alguns estudos, é que o crédito concedido para os co-produtos, torna as emissões durante o ciclo de vida do biodiesel muito menores que aquelas verificadas com o petrodiesel. Obviamente, esta análise é condicionada pelo tipo de matéria prima e pelos co-produtos obtidos.  

  7.  A maioria dos autores concorda que, para acessar o verdadeiro impacto do ciclo de vida dos biocombustíveis sobre a qualidade do ar, são necessários estudos adicionais. Modelos sofisticados de química atmosférica são necessários para que as complexas relações entre emissões durante o ciclo de vida, concentrações atmosféricas e a exposição da população local e regional aos poluentes possa ser efetivamente estabelecida. Isto é particularmente verdadeiro para o O3, mas igualmente importante para os outros poluentes.

O tesouro da superfície

 

Décio Luiz Gazzoni

 

Ou eu sou muito inquieto, ou a sociedade brasileira é muito acomodada. Digo isto por uma série de motivos, dois dos quais me perturbam muito. O primeiro, é que perdemos a capacidade de nos indignar com corrupção, falcatruas, desmandos, desvios, criminalidade, injustiças – ou falta de justiça, ou ainda justiça demorada. O outro, que não necessariamente tem a ver com o primeiro, é que somos pautados com muita facilidade. Um assunto é posto em pauta, normalmente sem contraditório, e a discussão gira em torno de detalhes do tema: dificilmente as alternativas a ele são colocadas.   Intróito posto, vamos ao ponto. O Governo encaminhou ao Congresso a proposta de marco regulatório da exploração das jazidas de petróleo da região do pré-sal. Está dada a pauta, discute-se o pré-sal, se as reservas têm 30, 50 ou 90 bilhões de barris, se o sistema de exploração deve ser de partilha ou concessão, se os roialties ficam só com os estados beira-mar do pré-sal ou se todos deveriam ser beneficiados, se devemos criar um fundo soberano, se sobreviveremos à doença holandesa, entre outros. Ou seja, como diz o gaudério, giramos em volta do toco – e o toco é o pré-sal. De repente, não existe mais o problema das mudanças climáticas globais. A discussão pós Kyoto, que se inicia em dezembro, em Copenhagen, parece que foi adiada sine die.   De repente – não mais que de repente – convenientemente nos esquecemos que o Brasil possui a matriz energética mais limpa do mundo e que tem a obrigação de pugnar por preservar e ampliar este patrimônio. O emprego, a interiorização do desenvolvimento, as oportunidades democráticas de renda, não são mais prioridades. Ninguém mais lembra que a sociedade global caminha para um câmbio paradigmático, em que as energias renováveis substituirão, progressivamente, a energia fóssil e suja, ao longo deste século. E que o Brasil está fadado a ser o protagonista desta mudança, ser a locomotiva do novo paradigma, seja energia eólica, solar ou de biomassa.

 

 

               

Nova pauta

 

É neste ponto que a minha banda de controvérsia fica inquieta, pois não aceito pratos feitos. Ótimo que Deus tenha colocado dezenas de bilhões de barris de petróleo no nosso sub-mar. Porém, será que o mesmo Deus que provê é o que nos pregou uma peça? Tivéssemos descoberto esta riqueza há 50 anos, estaríamos esgotando a sua exploração, já teríamos nos saciado com sua riqueza, e poderíamos nos alinhar com a maior cara-de-pau ao discurso ambientalista do futuro. Mas, atirar-se na exploração do pré-sal sem esgotar a discussão das alternativas, quando o mundo busca, desesperadamente, livrar-se da energia suja, é uma ironia do destino - a revogação de nosso passado de bom comportamento ambiental no setor energético. Mas será que Deus foi tão sacana assim com o Brasil? Afinal, Deus não é brasileiro?  

Parto da hipótese de que Deus é brasileiro, sim senhor. Colocou o petróleo escondido lá no pré-sal, para ser descoberto no momento errado, mas nos deu solo fértil e extenso e clima tropical adequado para produzir muita, mas muita biomassa. Um exagero de biomassa, coisa que nenhum outro país consegue produzir, de forma competitiva. E também colocou dentro de nossas fronteiras um povo com capacidade empresarial, mão de obra suficiente e adequada e criatividade para gerar tecnologia agrícola e industrial, para transformar solo e clima em alimentos e energia.

 

É aí que eu quero chegar. Em vez de discutirmos apenas a riqueza do petróleo do pré-sal, a 7.000m de profundidade, por que não discutirmos a riqueza que podemos extrair da biomassa, um inesgotável tesouro energético de superfície. A discussão que proponho é a seguinte: seria possível extrair a mesma quantidade de energia do pré-sal, a partir da agricultura de energia? Vou procurar demonstrar que é mais do que possível. A bem da verdade, podemos extrair muito mais energia, mas vou ficar nos limites da energia do pré-sal, que é a discussão do momento.

                            

 

Premissas

 

 

                Para demonstrar minha tese, elaborei um modelo matemático para calcular quantos hectares precisaríamos cultivar para extrair a mesma quantidade de energia de biomassa, que obteríamos com a exploração do petróleo do pré-sal. Para tanto, aceito sem discussão as premissas que estão sendo colocadas pelas fontes oficiais, quais sejam:

 

 

1.       As reservas da área do pré-sal poderiam chegar, na hipótese mais otimista, a 90 bilhões de barris de petróleo. Ninguém arrisca dizer quanto disto seria recuperável. Para evitar qualquer discussão lateral, o modelo assume que seria possível extrair integralmente a estimativa máxima, que é de 90 bilhões de barris de petróleo;

 

2.       No evento de lançamento do marco regulatório do pré-sal, foi afirmado que, em 2020, seria possível extrair 2 milhões de barris/dia (Mb/d) de petróleo do pré-sal. O modelo assume que, no primeiro ano, seriam extraídos 2 milhões de barris / dia (Mb/d) porém, a cada ano, este valor seria incrementado em 3%, até o esgotamento das reservas.

 

 

 

                Aceitas estas premissas sobre o petróleo, vamos às premissas da biomassa:

 

1.       Extrairíamos a mesma quantidade de energia que seria obtida do petróleo do pré-sal, porém obtida de cana-de-açúcar, ou de uma combinação de cana-de-açúcar e dendê. O Brasil possui inúmeras outras opções, as matérias primas poderiam ser diversificadas, porém simplificamos o modelo apenas para demonstrar a tese;

2.       Da cana é possível extrair, atualmente, bioetanol e, no futuro, uma multiplicidade de biocombustíveis, ainda mais eficientes que o etanol. Do bagaço e da palha de cana é possível gerar bioeletricidade;

3.       O modelo assume como conteúdo energético da cana o valor de 7,14GJ/t, correspondendo à energia contida no caldo, na bagaço e na palha. No modelo, este valor é fixo ao longo de todo o tempo - embora seja possível aumentar o teor energético da cana - a fim de evitar imputações de favorecimento da energia renovável;

4.       Na mesma linha de ser duro com a energia renovável, o modelo assume que apenas 70% da energia contida na cana seriam efetivamente transformadas em biocombustíveis ou bioeletricidade, no ínicio do processo, prevendo eventuais quebras de safra ou ineficiências de transformação. Entretanto, considerando um horizonte de 50 anos, este valor diminui à metade no final do período, pelos ganhos tecnológicos que evitarão quebras de safra (por fatores bióticos ou abióticos) e pelo ganho de eficiência de conversão de energia;

 

 

5.       Considera-se a média de produtividade inicial da cana de 100 t/ha, que já é obtida com facilidade pelas lavouras mais modernas. Considera-se um ganho de produtividade variável entre 1,5 e 2,4% ao ano, ao longo do período. Não foi considerada a possibilidade de irrigação, que aumentaria muito a produtividade de cana, para evitar discussões paralelas sobre competição no uso de água;

6.       No caso do dendê, o modelo assume um conteúdo energético de 9,24MJ (cascas, bagaço e óleo) e uma produtividade inicial de 25 t/ha, com teor de óleo de 22%, o que está perfeitamente dentro dos valores razoáveis, com a tecnologia comercial disponível. O óleo de dendê seria aproveitado para a produção de biodiesel ou outro biocombustível, enquanto a casca e o bagaço seriam aproveitados para geração de bioeletricidade;

7.       Assumiu-se uma perda de 10% na conversão de energia do dendê para biocombustível e bioeletricidade, valor fixo em todo o período, vez que a regularidade das chuvas no trópico úmido torna pouco provável quebras de produção. Para os ganhos de produtividade agrícola e industrial foram assumidos os mesmos valores utilizados para a cana.

 

 

Embora não seja possível extrair de imediato o petróleo do pré-sal, nos volumes acima referidos, o modelo assume que isto seria possível, apenas para permitir a comparação com as áreas de produção de cana e de dendê, que poderiam ser implementadas já no curto prazo.

 

 

A sequência de algoritmos do modelo prevê:

1.       Calcular quantos barris de petróleo seriam extraídos por ano, do pré-sal;

2.       Transformar este valor em unidades de energia (GJ);

3.      Converter a energia do petróleo em equivalente de energia de biomassa (cana ou dendê), calculando quantas toneladas de biomassa seriam necessárias para obter a mesma energia;

4.       Calcular a área necessária para obter o volume de biomassa calculado;

5.       Corrigir a área obtida em função das quebras de safra ou ineficiências de transformação.

 

 

Resultados

 

               

 

A Figura 1 mostra o que aconteceria se, em vez de extrair petróleo do pré-sal, a sociedade brasileira optasse por produzir a mesma quantidade de energia, a cada ano, obtida integralmente de cana-de-açúcar. Seriam necessários, no primeiro ano, 7,26 milhões de hectares e no ano 51, quando as reservas do pré sal se esgotariam, cultivar-se-iam 10,6 milhões de hectares de cana. A energia obtida desta área equivaleria a extrair 2 Mb/d no primeiro ano e 9,03 Mb/d no ano 51.

O leitor pode questionar que da cana não se obtém substituto do petrodiesel. Respondo com três argumentos: primeiro, no curto prazo, existem outros poços de petróleo em operação pela Petrobrás, que forneceriam o petrodiesel; segundo, já existe tecnologia comprovada e eficiente para substituir, parcialmente, petrodiesel por etanol, sem mudanças sensíveis nos motores; terceiro, já existe tecnologia em fase préindustrial, com microrganismos transgênicos, que transformam a sacarose da cana em hidrocarbonetos lineares, saturados, de cadeia média, quimicamente semelhantes ao petrodiesel (que já são chamados de diesel vegetal), e que podem ser utilizados sem mudanças nos motores. O processo de transformação da sacarose para diesel vegetal é mais eficiente que a transformação para etanol, o que significa ganhos de energia, que não foram computados no modelo, para evitar discussões desnecessárias de favorecimento da energia de biomassa.

 

Figura 1. Área de cana-de-açúcar necessária para produzir a mesma quantidade de energia extraída do petróleo da região do pré-sal.

 

 

               

 

As Figuras 2 a 4 representam um cenário em que 50% da energia equivalente ao petróleo extraído, anualmente, da região do pré-sal seriam obtidos de cana e 50% de dendê. Pelo exame da Figura 2 verifica-se que seriam necessários, inicialmente, 3,6 milhões de hectares de cana e, no ano 51 (esgotamento das reservas do pré-sal), 5,3 milhões de hectares, para obter energia equivalente à metade do petróleo que seria extraído do pré-sal. Já a Figura 3 mostra a energia obtida com a cultura do dendê, para obter outros 50% de energia equivalente ao petróleo do pré-sal. Neste caso seriam necessários, inicialmente, 9,5 milhões de hectares e, ao final do período, 15,6 milhões de hectares para produzir 50% da energia que seria obtida, anualmente,  com o petróleo do pré-sal.

 

 

               

 

Figura 2. Área de cana-de-açúcar necessária para produzir 50% da energia extraída do petróleo da região do pré-sal.

 

Figura 3. Área de dendê necessária para produzir 50% da energia extraída do petróleo da região do pré-sal.

 

 

 

 

A Figura 4 consolida as duas áreas necessárias (de cana e de dendê), mostrando que, no final do período, quando seria maior a demanda de energia, estaríamos utilizando 21 milhões de hectares, o que significa, aproximadamente, a área cultivada atualmente com soja no Brasil, ou meros 2,47% do território nacional!  

Figura 4. Área total de cana-de-açúcar e de dendê necessárias para produzir o equivalente em energia extraída do petróleo da região do pré-sal.

               

 

Custos e receitas

 

Até no tocante a custos a alternativa de biocombustíveis é mais vantajosa – o que não surpreende, pois, na disparada maioria dos estados brasileiros, o etanol na bomba é mais vantajoso que a gasolina, o que tornou a tecnologia flex-fuel um estrondoso sucesso comercial. Apresentamos apenas a simulação com a substituição integral do petróleo do pré sal por energia de cana. Para a alternativa cana considerou-se o custo de produção da matéria prima, o investimento para dispor de capacidade industrial para a obtenção da energia e o custo de operação da planta industrial. No caso do petróleo, assumiu-se o valor de US$55,00/barril, patamar referido por especialistas em eventos sobre o tema. No total do período o custo com a alternativa cana é de 2,4 trilhões de reais e da extração de petróleo de 4,7 trilhões de reais (v. Figura 5).  

Figura 5. Custos anuais de obtenção de energia de cana-de-açúcar e de petróleo do pré-sal

 

 

 

Figura 6. Receitas obtidas com a energia gerada por cana-de-açúcar e pelo petróleo do pré-sal.

 

   

Em relação às receitas, o valor auferido pela alternativa cana é inferior, modulado que é pelo seu custo de produção menor (Figura 6). Ao longo do período as receitas com energia de cana somariam 3,5 trilhões de reais e com petróleo 5,9 trilhões de reais.

De posse destes dados é possível estimar a margem do negócio, conforme mostrado na Figura 7. Observe-se que, no primeiro ano, a margem para a alternativa cana é negativa, pois se considerou que todo o parque de processamento deveria ser criado com exclusividade para a alternativa energia (não seria aproveitado a atual capacidade de processamento), o que demanda pesados investimentos iniciais. Para o total do período, a margem com cana seria de 1,2 trilhões de reais e com petróleo de 1,3 trilhões de reais, o que é coerente visto que, por estarem disputando o mesmo mercado energético, com alto grau de substituibilidade, as margens tendem a se aproximar.

 

 

 

 

Figura 7. Margens auferidas pela comercialização da energia obtida da cana-de-açúcar e do petróleo do pré-sal.

 

 

 

Discussão

 

                Algumas questões podem ser levantadas, portanto melhor respondê-las a priori. Por exemplo:

 

- O Brasil dispõe da área necessária para plantar a cana, ou o dendê e a cana, para obter a mesma energia equivalente à  do petróleo extraído do pré-sal?

 

Seguramente dispõe. E ousaria afirmar que não precisaríamos derrubar uma única árvore para tanto, o que atende tanto à determinação do Presidente Lula, quanto a luta das ONGS ambientais, sem falar na pressão dos governos de outros países.

 

Poderíamos cultivar toda a cana e todo o dendê apenas aproveitando as áreas já antropizadas, de pastagens degradadas, de baixa eficiência. Estima-se que, do total de 170 milhões de hectares de pastagens do Brasil, cerca de 25% se encontram em estágio avançado de degradação, com baixa eficiência produtiva. Melhorando em apenas 25% os índices médios de lotação e de idade de abate do gado de corte (que, diga-se de passagem, não fazem jus ao estado da arte da tecnologia pecuária disponível no Brasil), liberaríamos mais de 40 milhões de hectares de pastagens degradadas. Entretanto, no cenário de maior demanda de área, não precisaríamos nada além de 21 milhões de hectares para produzir a mesma energia que seria extraída dos 90 bilhões de barris de petróleo do pré-sal.

 

- E os fertilizantes? De onde viriam?

 

A cana, além de grande fornecedora de energia, também fornece água e fertilizantes. Como o fósforo e, principalmente, o potássio não são exportados, porém permanecem na torta de filtro, nas cinzas e na vinhaça, os nutrientes retornam em grande parte para a lavoura de cana. Temos grandes reservas sub-aproveitadas de fósforo, em diversos pontos do território nacional. Também temos grandes reservas de potássio, que nunca foram aproveitadas. Dispomos de tecnologia para fixar parte do nitrogênio requerido pela cana, através de bactérias endofíticas, sem necessidade de adubação. A renovação dos canaviais, a cada 5 anos, pode ser efetuada com soja ou amendoim, que deixam uma parcela do nitrogênio no solo. O cultivo intercalar de leguminosas com o dendê pode prover outra parte. E, o restante, pode ser obtido a partir da síntese utilizando como insumo industrial as reservas de gás dos atuais poços que a Petrobrás já opera.

 

               

 

               

 

                - E quais seriam as vantagens de produzir energia de biomassa, ao invés de extrair petróleo?

 

Vamos enumerá-las:

1. Do ponto de vista econômico, as diferenças seriam pequenas, posto que o mercado se ajustaria aos custos e à demanda. Sob a ótica da arrecadação de impostos, não haveria muita diferença entre obter energia de uma ou outra fonte. Do ponto de vista comercial, estaríamos em linha com as tendências mundiais de uso de energia limpa, portanto um mercado ascendente nos próximos anos.

 

2.    Do ponto de vista ambiental, evitaríamos a emissão de 43 bilhões de toneladas de gás carbônico, resultante da queima do petróleo. Este valor foi obtido utilizando a metodologia desenvolvida pelo Prof. Horta Nogueira (UNIFEI), que demonstrou que o ciclo fechado do carbono dos biocombustíveis produz uma emissão líquida de apenas 9-10% do equivalente em massa de combustível fóssil. No caso da substituição de gasolina por bioetanol, o Prof. Horta Nogueira demonstrou que, enquanto 1.000 litros de gasolina produzem uma emissão líquida de 3.368 kg de CO2, o mesmo volume de bioetanol produz emissões líquidas de apenas 309 kg de CO2. Evitar este fabuloso volume de emissões de gases de efeito estufa representará um privilegiado patrimônio geopolítico para o país, que poderá lançar mão deste crédito em negociações internacionais, acordos sobre energia, comércio ou de outra ordem.  

Figura 8. Emissões de CO2 evitadas, anualmente, com a substituição de combustíveis provenientes do petróleo do pré-sal por biocombustíveis

 

 

 

3.    Do ponto de vista de saúde pública, basta lembrar que a Organização Mundial de Saúde - OMS divulgou recentemente que 3 milhões de pessoas morrem, anualmente, devido aos efeitos da poluição atmosférica, sendo parcela ponderável atribuída aos poluentes liberados pela queima de combustíveis fósseis. A cidade de São Paulo gasta, por ano, US$ 208 milhões com os efeitos da poluição atmosférica sobre a saúde humana. A estimativa considera apenas os custos diretos que a cidade tem com as doenças e mortes causadas pelo coquetel de gases que os paulistanos inalam toda vez que enchem os pulmões. Estudos do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da Faculdade de Medicina da USP mostram que poluição atmosférica mata oito pessoas por dia, em média, na cidade de São Paulo. Em dias em que há paralisação do metrô e consequente aumento na concentração de poluentes, ocorrem nove mortes a mais do que nos dias pós-greve. Quem vive em cidades poluídas como São Paulo tem a vida abreviada em 2,5 anos. Todo este sofrimento humano poderia ser evitado com o uso de biocombustíveis, eliminando os particulados emitidos pelos combustíveis derivados de petróleo.   4.    No tocante à geração de empregos, diversos estudos podem ser citados. Primeiro, um estudo da Embrapa demonstrou que uma lavoura de dendê de 5 hectares gera renda suficiente para atender, com dignidade, as necessidades de uma família. Supondo que a família se componha de 4 pessoas, na média dos 50 anos de duração das reservas do pré-sal, seria possível gerar renda para um conjunto de mais de 10 milhões de cidadãos. Em relação à lavoura de cana, o Prof. José Goldemberg, da USP, demonstrou que, por unidade de energia produzida, a produção de bioetanol, em comparação com as cadeias de carvão mineral, hidroeletricidade e petróleo necessita, respectivamente, de 38, 50 e 152 vezes mais mão de obra. O prof. Leal, da Unicamp, refere que, durante a vida útil total de um veículo (15 anos), é necessário 6 vezes mais mão de obra caso se utilize a mistura de 24% de bioetanol na gasolina, ou 21 vezes mais, quando se utiliza 100% bioetanol, comparativamente ao mesmo veículo movido exclusivamente a gasolina. Estudos da ÚNICA e do MAPA (2004) mostraram que, para cada milhão de litros de etanol produzidos, foram gerados 37 empregos diretos no campo e, para cada emprego direto, entre 1 e 3 empregos indiretos. Baseados nestes números, seriam gerados mais de um milhão de empregos diretos e mais de 2 milhões de empregos indiretos, considerando apenas a cadeia do bioetanol (no cenário com 50% da energia obtida da cana). Caso toda a energia seja obtida da cana, seriam 2 milhões de empregos diretos e 4 milhões indiretos. Enquanto isso, de acordo com o Prof. Goldemberg, o petróleo do pré-sal geraria apenas e tão somente 12.000 empregos diretos e 24.000 indiretos. Estes números nos obrigam a pensar na empregabilidade dos nossos filhos e netos e posicioná-la na discussão do pré-sal.

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5.    A cada 5 anos é necessário renovar o canavial. A cultura de dendê permite intercalar cultivos, até o terceiro ano. Nesta condição, teríamos o bônus de aumentar a produção de alimentos em 15-20%, sem expandir a área cultivada, favorecendo, especialmente, a agricultura familiar.   6.    Finalmente, e de extrema importância. Estamos no ano de 2061 e as reservas de petróleo do pré-sal acabaram. Porém, a demanda de energia no Brasil e no mundo continua crescendo. Como atendê-la? No caso do petróleo, não sei responder, a não ser reafirmar que não acredito que a sociedade mundial continuará com a atitude suicida de empestar a atmosfera queimando energia suja, até a metade deste século. Entretanto, no caso da biomassa tenho a resposta pronta: continuaremos produzindo cada vez mais alimentos e mais energia, por séculos e séculos, porque se trata de uma fonte não apenas limpa mas, principalmente, renovável. Os 21 milhões de hectares que foram utilizados por 50 anos para produzir energia, continuarão à nossa disposição para a finalidade que a sociedade lhe destinar. Esta é uma das grandes vantagens estratégicas que devem nortear a reflexão de todos nós.

 

 

 

Entendo o interesse e o frisson em torno do pré-sal, a única grande incorporação de reservas de petróleo do mundo, nas últimas décadas. Entendo, perfeitamente, as razões das companhias petrolíferas – nacionais e multinacionais. Entendo as razões das empreiteiras e de toda a cadeia do petróleo. Entendo as razões dos políticos e de todos quantos defendem a exploração imediata e total desta riqueza.  

Entretanto, julgo que, neste momento histórico em que se busca a segunda independência do Brasil, ser necessário analisar as alternativas de que dispomos, de espírito aberto, buscando equilibrar na balança do bom senso, o que é melhor para o Brasil e para o mundo – afinal, também vivemos no mundo. E um mundo melhor - com menos problemas climáticos, com menos problemas de saúde, com mais emprego (e menos criminalidade), com melhor distribuição de renda, com interiorização do progresso, com múltiplas oportunidades para pequenas e médias empresas, com garantia de atendimento da demanda de energia além do horizonte do fim da era do petróleo - interessa a todos.

  Não tenho a pretensão de que os números aqui apresentados sejam precisos, menos ainda exatos, pois trata-se de um modelo de simulação matemática. De resto, os números do pré-sal também não são precisos ou exatos. O objetivo deste artigo é mostrar que outro mundo é possível: um mundo com menos poluição, mais emprego, mais renda, mais justiça, provocando uma reflexão do leitor por um ângulo que não lhe havia sido apresentado anteriormente. Feliz do povo que pode escolher entre alternativas, quando o restante do mundo se bate, desesperadamente, por uma solução para a crise energética – mesmo que a solução signifique o aprofundamento do problema.

 

 

 

                Como queríamos demonstrar, Deus é brasileiro, sim. Nós, brasileiros, é que precisamos entender, corretamente, os desígnios divinos. E, para entendê-los, melhor não nos bitolarmos e não restringirmos a discussão apenas à pauta que nos é empurrada goela abaixo, buscando uma solução que seja a melhor para todos. E que pode ser até uma combinação entre o que expus acima e retirar apenas um terço do petróleo do pré-sal, impondo um imposto poluição para, através de serviços ambientais, limpar a sujeira causada pela sua queima.

 

Biocombustíveis e biodiversidade

Décio Luiz Gazzoni

 

1. Introdução

Segundo alguns estudiosos do tema, o aumento da produção de biocombustíveis, nas próximas décadas, trará impactos sobre a diversidade biológica – biodiversidade - assim definida como a riqueza de espécies e o número estimado de espécies de plantas, animais e microrganismos por unidade de área. Os impactos negativos sobre a biodiversidade será, na maior parte, resultado da perda de habitat, do aumento do número de espécies invasoras, e do impacto adverso da expansão do uso de fertilizantes e agrotóxicos. Contrário senso, o aumento da produção de biocombustíveis também pode ter alguns impactos positivos na biodiversidade, ao diminuir as emissões de gases de efeito estufa, consequentemente, freando o ritmo das mudanças climáticas globais, que possuem grande impacto negativo sobre a biodiversidade.   A análise do impacto da produção de biocombustíveis sobre a biodiversidade não foge muito dos impactos causados pela expansão da agricultura de alimentos. Vamos nos ater aos seguintes tópicos: a) efeitos da perda de habitat para a biodiversidade, b) espécies invasivas; c) efeitos nos ecossistemas terrestres e aquáticos por poluição. Para a análise, destacaremos as diferenças dos impactos espaciais e temporais na biodiversidade.

 

2. Perda de Habitat

A literatura registra diversos estudos, apontando que a perda de habitat será o principal fator de perda de biodiversidade, ao longo deste século. A forma mais drástica de perda de habitat ocorre quando uma comunidade diversificada de plantas, animais e microrganismos são substituídos por uma monocultura, o que é sempre o caso da expansão da agricultura.

  Deve-se considerar que as terras disponíveis são finitas, e que existem diferentes usos do solo (agricultura, áreas de conservação, uso urbano). Em cada um destes grandes grupos, existe um espectro de usos da terra com diferentes impactos. Por exemplo, a agricultura pode variar em um gradiente, cujos extremos são intensiva ou extensiva, significando diferentes pressões sobre a biodiversidade. Imaginando uma propriedade em que apenas 60% da área é cultivada, ou que cultiva uma safra por 4 meses e depois permite o pousio, ou ainda que integre sistemas tipo Lavoura – Pecuária – Florestas, podemos verificar que o impacto sobre a biodiversidade é muito diferente que uma área onde se observa um monocultivo, em safras consecutivas, sem interrupção. Não resta dúvida, também, que um sistema de cultivo intensivo terá mais impacto deletério sobre a biodiversidade.  

A União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), classifica as áreas protegidas em seis categorias, que variam de reservas naturais protegidas, passando por parques nacionais, chegando ao uso sustentável dos recursos naturais. O impacto sobre a biodiversidade é diferenciado em cada uma destas categorias e o impacto tem muito a ver com a perda ou conservação do habitat natural.

 Em teoria, o ingresso das culturas energéticas no sistema agrícola aumenta a pressão por expansão das áreas destinadas à agricultura. Logo, as novas áreas precisam ser retiradas de algum estoque pré-existente. Dificilmente o fluxo de terras sai do uso urbano para o agrícola -o reverso, sim, é verdadeiro.

 

 

 

 

Considere-se que o aumento no número de espécies, relacionado ao tamanho da área disponível, é uma característica omnipresente na maioria dos comunidades ecológicas, pois significa maiores oportunidades de abrigo e alimentação, além de facilitar a reprodução das espécies. Portanto, reduzir esta área significa reduzir as oportunidades para os componentes da biodiversidade e algumas espécies serão fortemente desfavorecidas.

 Duas considerações podem ser feitas a respeito do impacto relativo da alteração do uso da terra sobre a diversidade de espécies. Primeiro, por causa da relação curvilinear entre a riqueza de espécies e a área em que vivem, deve-se levar em conta a extensão da área dentro da qual se insere a área a ser convertida. Quanto menor for a área geral, tanto maior será a perda de biodiversidade.

  A segunda consideração está relacionada às diferenças na densidade de espécies de diferentes regiões, que varia muito de acordo com o tipo de vegetação. Assim, nas regiões com maior diversidade de espécies,as perdas proporcionais seriam maiores. Por exemplo, as regiões de expansão do Canadá, que ficam sob neve metade do ano, possuem diversidade de espécies menor que os Cerrados do Maranhão. Portanto, a ocupação dos Cerrados maranhenses, em área tropical, implicará em maior perda de espécies que em áreas de mesmo tamanho, cultivadas em altas latitudes. Esta linha de raciocínio é uma ameaça permanente à expansão de área de agricultura de energia em países tropicais, como o Brasil.   Para expandir a área de produção, tanto podem ser reaproveitadas terras abandonadas (como pastagens degradadas) quanto ingressar em terras virgens, com diferentes impactos sobre a biodiversidade. Os estudiosos ainda subdividem este processo em efeito direto (quando as culturas energéticas deslocam diretamente áreas de conservação) ou indireto, quando as culturas energéticas ocupam o lugar de culturas alimentícias, que passam a ocupar novas áreas. Esta classificação tem gerado enorme polêmica, pela dificuldade de estabelecer um nexo acima de qualquer dúvida razoável, entre a expansão de cultivos energéticos, em uma determinada região geográfica, e a perda de habitats para a biodiversidade, a 2 ou 3.000km de distância.

 

 

 

Como se verifica, é difícil separar a produção de alimentos da agricultura energética: são duas faces da mesma moeda. No entanto, para a sociedade, será mais importante produzir alimentos que energia (existem outras fontes além dos biocombustíveis), logo a produção de energia sempre sofrerá mais críticas. Portanto, é importante sempre ter em mente a demanda de área prevista para a produção de diferentes produtos agrícolas.   Por exemplo, o Millennium Ecosystem Assessment prevê em um de seus cenários (Orquestração Global) que, no ano de 2050, a demanda de alimentos aumentará em 3.321 milhões de toneladas sobre o valor atual de 3.906 Mt. A demanda de cereais aumentará em 73% e a demanda por produtos pecuários vai aumentar em 63%. Os cenários mais otimistas predizem incorporação de áreas agrícolas em 0,01% ao ano, entre 1997 e 2050. Já os cenários mais pessimistas projetam aumentos de 0,34% por ano, no mesmo período de tempo. Esta última taxa significa um aumento da área agrícola de 137 milhões de hectares, em 2050.   A área total dedicada à agricultura depende da demanda de produtos agrícolas e, obviamente, da produtividade, que passa a ser um importante componente da equação de preservação da biodiversidade. No entanto, estes cenários não incorporam a expansão da agricultura de energia, que teria que ser computada à parte. Por exemplo, esta seria a área estimada para produzir, em 2050, aproximadamente, 1 trilhão de litros de etanol ou 600 bilhões de litros de biodiesel (ou sucedâneos), com o estado da arte tecnológico daquela data. Estima-se que, este volume, permitiria abastecer um terço da demanda de combustíveis líquidos, na metade deste século.

 

 

 

 

 

O desaparecimento da espécie não ocorre concomitantemente com o a supressão do habitat, porém após lapsos de tempo variáveis em função da história de vida e dos requerimentos de cada uma das espécies. Portanto, é difícil mensurar, no início do processo de expansão da área agrícola, o impacto negativo, que somente se manifestará após alguns anos. Assim, apesar das considerações teóricas, não identificamos um estudo quantitativo dos efeitos dos biocombustíveis sobre a diversidade de espécies, seguramente porque o tempo decorrido desde o início do ciclo de produção mais intensa de biocombustíveis é muito curto. No máximo é possível inferir os impactos a partir de estudos similares, realizados com cultivos alimentares.

 

Sob o ponto de vista global, a localização das áreas de expansão de produção de matéria prima para biocombustível dependerá da região do mundo que se considera. No mundo desenvolvido, onde a maioria das terras com potencial agrícola já foi convertido, os autores convergem em que somente será possível aproveitar áreas marginais, ou que tenham sido cultivadas antigamente e, posteriormente, abandonadas, desde que o motivo do abandono não afete o cultivo de matéria prima para agricultura de energia. Já nos países em desenvolvimento, existem grandes áreas de florestas, savanas e outras áreas ainda não convertidas para a agricultura, principalmente por conta de limitações de infra-estrutura. Diversos países, ponteados pelo Brasil, possuem área de expansão para a agricultura, tanto de novas áreas com alta vocação agrícola, quanto de áreas degradadas, cultivadas anteriormente e abandonadas por diversos motivos.

  Um dos maiores temores expressos por alguns analistas é que a pressão pelo uso de biocombustíveis será de tal ordem, que seria muito difícil reduzir a taxa de incorporação de áreas de conservação, sendo o desmatamento da Amazônia um tema recorrente, neste particular. Embora, particularmente, eu não compartilhe deste temor, entendo que devemos nos preparar adequadamente para esta discussão, munidos de fatos e números, para contrapor os argumentos meramente qualitativos e emocionais, que normalmente são brandidos por ONGs ambientalistas.

 

 

3. Plantas Invasivas

 

Espécies que invadem ou são introduzidos em áreas fora de seus limites históricos, muitas vezes têm grandes, impactos negativos sobre a biodiversidade nativa. Um organismo, animal ou vegetal, pode não se adaptar ao novo ambiente onde for introduzido. Entretanto, as espécies invasivas podem agir de forma muito agressiva, por maior capacidade de competição com as espécies nativas e, principalmente, pela ausência de inimigos naturais (parasitos, predadores, doenças, etc). Existem diversos exemplos de plantas invasivas introduzidas em novos ambientes, que levaram à perda da biodiversidade nativa, além de ocasionar prejuízos econômicos de monta.

 

O risco de ingresso de espécies invasivas, pelo aumento da produção de matéria prima para biocombustíveis, pode tanto decorrer de introdução de sementes ou mudas, de espécies já cultivadas no país - devido à deficiências de abastecimento do mercado local - como pela introdução de novas espécies. No caso de plantas já adaptadas ao ambiente produtivo local, os perigos são relativamente pequenos, se a planta já vem sendo cultivada para outras finalidades, especialmente se em larga escala. Um exemplo é o milho nos EUA, outro a cana no Brasil. Um novo uso para uma cultura consolidada não implica em novos riscos.

  Uma análise diferente precisa ser efetuada se uma planta não cultivada, que ingresse em determinado país, for cultivada extensivamente. Igualmente, uma planta nativa, porém restrita a determinados ambientes, e tendo co-evoluído com a fauna e a flora local, pode representar riscos à biodiversidade, se cultivada em larga escala, em locais diferentes de onde existia enquanto vegetação nativa.

 

 

 

No caso de espécies introduzidas especificamente para a produção de biocombustíveis, os cuidados precisam ser maiores, pois sempre existe o risco de a nova espécie tornar-se uma invasora agressiva, competindo com vantagens comparativas sobre outras espécies, que estão em equilíbrio no ambiente. O perigo inicia a partir do momento em que há fuga para o ambiente, fora do espaço de cultivo comercial. Outro risco é a quebra da cadeia alimentar de pragas, servindo a nova cultura como hospedeiro final ou intermediário de insetos, fungos, bactérias, vírus ou nematóides, provocando desequilíbrios no ambiente em que se insere.   Um dos principais riscos destes cultivos extensivos é o chamado efeito de massa, em que monoculturas representam uma super oferta de alimento para pragas, em um ambiente altamente simplificado, com poucas oportunidades para estabelecimento de inimigos naturais. Estas pragas podem ter outros hospedeiros nativos – que seriam eliminados - e podem representar um risco de desequilíbrio ecológico em um ambiente anteriormente equilibrado.

 

4. Poluição

 

A poluição por fertilizantes e agrotóxicos associados à produção de biocombustíveis é outra importante fonte de impacto sobre a biodiversidade terrestre e aquática. O aumento da concentração de nitrogênio e de fósforo no solo; a erosão, carreando solo, fertilizantes e agrotóxicos para cursos de água; a deriva de aplicação de agrotóxicos sobre áreas não cultivadas; a descarga de restos de agrotóxicos ou a limpeza de pulverizadores em cursos de água; o descarte inadequado de embalagens; o uso de fogo, entre outros aspectos, pode ter um impacto sobre a biodiversidade local. Entretanto, como nos casos anteriores, não se trata, especificamente, de um impacto exclusivo de culturas energéticas, porém do processo agrícola em si.   Entretanto, um aspecto particular da cultura da cana é um importante mitigador deste processo. Já existe tecnologia para fixação simbiótica de nitrogênio na cana, dispensando parcela ponderável da adubação nitrogenada. Adicionalmente, considere-se que o etanol é composto apenas de átomos de carbono, hidrogênio e oxigênio. Portanto, o potássio, o fósforo, o cálcio, o enxofre e alguns micronutrientes permanecem na vinhaça ou nas cinzas do processo de combustão e podem ser devolvidos à lavoura de forma tecnicamente apropriada, reduzindo os riscos de poluição.

 

 

5. Interações

Os fatores descritos anteriormente podem ter impacto isolado, ou podem ser potencializados, caso ocorram concomitantemente. Por exemplo, a introdução de uma nova espécie, que provoque um desequilíbrio biológico, que ocasione maior demanda de agrotóxicos, pode levar a um impacto mais intenso na biodiversidade. A ampliação do cultivo de plantas com alta demanda de fertilizantes – em especial nitrogênio, como é o caso do milho – também pode levar a impactos acentuados.   A literatura cita diferentes tipos de interação. Elas podem ser do tipo aditivo, quando os efeitos ocorrem em diferentes locais e em diferentes escalas. Por exemplo, uma expansão acentuada do cultivo de milho pode resultar em maior escoamento de nutrientes e conseqüente perda de diversidade aquática nos cursos de água, além da perda de hábitat local, que pode, independentemente do efeito sobre o as espécies aquáticas, reduzir a diversidade dos ecossistemas terrestres.   As interações sinergísticas ocorrem quando os fatores incidem em escalas semelhantes, em áreas próximas ou adjacentes. Por exemplo, no caso de introduzir uma nova espécie para produção de biocombustível, em que, além dos impactos diretos na área cultivada, haverá perda de biodiversidade pela competição desfavorável para as espécies nativas, caso esta espécie se torne uma planta invasiva.

 

 

6. Conclusões

 

Pela análise da literatura que consultamos, os impactos sobre a biodiversidade, pelo cultivo de matéria prima para produção de biocombustíveis, em nada diferem dos mesmos perigos e riscos que são atribuídos à agricultura em geral. Talvez a principal questão que possa ser levantada é que haverá maior expansão de área cultivada – portanto maior risco de impacto negativo sobre a biodiversidade – com uma expressiva produção de biocombustíveis, comparativamente com a tendência que seria esperada, caso a sociedade continuasse demandando os mesmos produtos agrícolas atualmente produzidos. Assim mesmo, considerando que o Brasil é o país com maior potencial de produção de biocombustíveis, deveremos nos preparar adequadamente para esta discussão, munido de farta documentação científica sobre o tema.

 

 

 

           

 

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